O fato de ela o amar apesar das suas imperfeições, da sua astúcia predatória, da sua necessidade de perseguir e caçar outros seres humanos, parecia-lhe um milagre. Mas vivia no pavor constante de que ela descobrisse a sua verdadeira natureza, e o desprezasse. Por isso se tornara tão meticuloso no seu trabalho, adquirindo assim uma inatacável reputação de honestidade.
Georgette nunca duvidara dele por um instante que fosse. Provara-o certa noite, quando foram convidados para jantar em casa do diretor, juntamente com cerca de vinte outras pessoas, um evento semi oficial e um sinal de distinção.
A dada altura durante o serão, o diretor arranjara as coisas de maneira a ter um momento a sós com Cilke e a mulher. E dissera a Georgette:
― Sei que está envolvida numa série de causas liberais. Respeito o seu direito de o fazer, claro. Mas talvez não tenha compreendido exatamente até que ponto as suas atividades podem prejudicar a carreira do Kurt no Bureau.
Georgette sorrira e respondera, num tom grave:
― Tenho perfeita consciência disso, e sei que o erro e o prejuízo seriam do Bureau. Claro que, se as minhas posições viessem a revelar-se demasiado problemáticas, o meu marido demitir-se-ia.
O diretor voltara-se para Cilke, com uma expressão de surpresa no rosto.
― É verdade? - perguntara. - Demitia-se?
Sem um instante de hesitação, Cilke respondera.
― Sim, é verdade. Entrego os papéis amanhã de manhã, se o desejar.
― Oh, não! ― exclamara o diretor, com uma gargalhada. ― Não nos aparecem todos os dias homens do seu nível. ― E então, lançando a Georgette um olhar friamente aristocrático, acrescentou ―: A extrema devoção à esposa é talvez o último refúgio de um homem honesto.
Riram-se todos do pedantismo, para mostrarem a sua boa-fé.
Capítulo 4
Durante os cinco meses que se seguiram à morte do Dom, Astorre andou atarefado a conferenciar com alguns dos antigos amigos do tio, a tomar medidas para proteger os primos de qualquer mal e a investigar as circunstâncias do crime. Acima de tudo, tinha de descobrir uma razão para um ato tão ousado e ultrajante. Quem teria dado a ordem para matar o grande Don Aprile? Sabia que ia ter de ser muito, muito cuidadoso.
Foi em Chicago que se encontrou pela primeira vez com Benito Craxxi.
Craxxi afastara-se de todas as operações ilegais dez anos antes do Don. Como ex-grande consiglieri da Comissão Nacional da Máfia, tinha um conhecimento profundo da estrutura de todas as Famílias dos Estados Unidos. Fora o primeiro a detectar a degenerescência do seu poder e a prever o seu declínio. Por isso se retirara prudentemente e passara a jogar na Bolsa, descobrindo, com deliciada surpresa, que ali podia continuar a roubar grandes quantidades de dinheiro sem o mínimo risco de qualquer espécie de sanção legal. O seu nome fazia parte da lista que o Don dera a Astorre das pessoas que deveria consultar em caso de necessidade.
Aos setenta anos, Craxxi vivia com dois guarda-costas, um motorista e uma jovem italiana que lhe fazia as vezes de cozinheira, governanta e, dizia-se, parceira sexual. Gozava de uma saúde perfeita, pois sempre fizera uma vida regrada; comia com moderação e só bebia de longe em longe.
No café da manhã comia frutas e um pouco de queijo; ao almoço, uma omeleta e sopa de legumes, sobretudo feijões e chicória; ao jantar, uma simples costeleta ou lombo de cordeiro e uma grande salada de cebola, tomate e alface. Fumava apenas um charuto por dia, logo a seguir ao jantar, com o café e o anisette. Gastava o seu dinheiro magnânima e sensatamente. Era também muito cauteloso com as pessoas a quem dava conselhos. Porque aquele que dá um mau conselho passa a ser odiado como um inimigo.
Para com Astorre, porém, foi generoso, pois Benito Craxxi era um dos muitos homens que devia a Don Raymonde Aprile grandes favores. Fôra o Don que o protegera quando resolvera retirar-se, uma atitude sempre perigosa na linha de negócios a que se dedicavam.
Craxxi marcou o encontro para o café. Havia taças de fruta ― brilhantes pêras amarelas, maçãs-reinetas, morangos quase do tamanho de limões, uvas brancas e cerejas vermelhas muito escuras. Sobre uma tábua, uma grande fatia de queijo parecia uma lasca de rocha cor de ouro. A governanta serviu-lhes café e anisette e desapareceu.
― Com que então, meu rapaz ― disse Craxxi ―, és tu o guardião que Don Aprile escolheu.
― Sou ― respondeu Astorre.
― Sei que ele te treinou para esta tarefa ― continuou Craxxi ― o meu velho amigo era um homem de visão. Conversamos muitas vezes a esse respeito. Sei que tens as qualificações para o trabalho. O que quero saber é, tens também a vontade?
Astorre sorriu. A sua expressão era inteiramente franca.
― O Don salvou-me a vida e deu-me tudo o que tenho ― disse. ― Sou o que ele me fez. E jurei que protegeria a família. Se a Nicole não passar a sócia da firma de advogados, se a rede de televisão do Marcantonio falir, se acontecer alguma coisa ao Valerius, continuarão a ter os bancos. Tive uma vida feliz. Lamento as circunstâncias que me obrigam a aceitar esta tarefa. Mas dei a minha palavra ao Dom e cumpri-la-ei. Se o não fizesse, em que poderia acreditar pelo resto da minha vida?
Momentos da infância passaram-lhe fugazmente pela memória, momentos de grande alegria, pelos quais estava grato. Cenas dele próprio quando criança na Sicília, com o tio, passeando pelas montanhas, ouvindo as histórias que o Don contava. Sonhou então com uma época diferente, em que homens poderosos faziam justiça, sabiam valorizar a lealdade pelo seu justo preço e realizavam grandes feitos. E, nesse momento, teve uma saudade enorme do Don e da Sicília.
― Ótimo ― disse Craxxi, interrompendo-lhe o devaneio e chamando-o de volta ao presente. ― Estavas no local. Descreve-me tudo o que viste.
Astorre assim fez.
― E tens a certeza de que ambos os atiradores eram canhotos? ― perguntou Craxxi.
― Um com toda a certeza, o outro provavelmente.
Craxxi assentiu devagar com a cabeça e pareceu perder-se nos seus pensamentos. Ao cabo do que pareceu um longo tempo, olhou diretamente para Astorre e disse:
― Julgo saber quem foram os atiradores. mas não nos precipitemos. É mais importante descobrir quem os contratou, e porquê. Vais ter de ser muito cuidadoso. Ora bem, pensei muito neste assunto. O suspeito mais provável é o Timmona Portella. Mas por que razão e para agradar a quem? É verdade que sempre foi um cretino imprudente, mas matar Don Aprile era forçosamente um empreendimento muito perigoso. Até o Timmona tinha medo dele, retirado ou não.
― Quanto aos assassinos, são dois irmãos que vivem em Los Angeles, e são os melhores especialistas dos Estados Unidos. Nunca falam. Poucas pessoas sabem sequer que são gêmeos. E são ambos canhotos. Têm coragem, e são lutadores natos. O perigo há de ter-lhes agradado, e o pagamento foi com certeza enorme. Além disso, hão de ter tido algumas garantias... de que as autoridades não investigariam o caso com muito empenho. Acho muito estranho não ter havido qualquer espécie de vigilância oficial da polícia ou do FBI durante o crisma na catedral. Ao fim e ao cabo, Don Aprile continuava a ser um alvo do FBI, apesar de retirado.
― Ora bem, tens de compreender que tudo o que te disse é apenas teoria. Terás de investigar e confirmar. E então, se eu tiver certo, deverás atacar com todo o seu poder.
― Mais uma coisa ― pediu Astorre. ― Os filhos do Don estão em perigo?