― Uma bela lição sobre História e sobre psicologia humana ― declarou. ― Mas mais uma vez, e depois?
Harrison bateu com a mão na caixa de vídeos.
― Tenho mais, e antevejo alguma resistência. Estes são um pouco mais melindrosos. Nós os dois fazemos negócio há já muito tempo. Quero ter a certeza de que irás passar estes anúncios na tua rede. As outras farão forçosamente o mesmo.
― Não consigo imaginar porquê ― mentiu Marcantonio.
HarriSon inseriu uma nova fita no vídeo-gravador e explicou: ―Adquirimos os direitos para usar celebridades defuntas nos nossos anúncios. É um desperdício enorme permitir que os mortos famosos deixem de ter uma função na nossa sociedade. Queremos mudar isso e devolver-lhes a sua antiga glória.
A fita começou a passar. Houve uma série de imagens mostrando a madre Teresa a cuidar dos pobres e doentes de Calcutá, a cobrir com o seu hábito de freira os rostos dos moribundos. Uma outra imagem dela a receber o Prêmio Nobel, com o brilho interior a iluminar-lhe as rudes feições, tocante na sua humildade. Depois, uma foto dela a distribuir sopa de um grande panelão pelos pobres das ruas. Tudo isto a preto e branco.
Subitamente, a tela enche-se de cor. Um homem elegantemente vestido aproxima-se de uma panela com uma malga na mão e diz a uma bela jovem: “Posso comer uma sopa? Ouvi dizer que é maravilhosa.” A bela jovem dirige-lhe um sorriso radiante e despeja uma concha de sopa na malga. Ele bebe-a, com um ar extasiado.
O plano seguinte é de um supermercado. Em grande plano, uma prateleira cheia de latas de sopa com o rótulo Calcutá. Uma voz off proclama: “Sopa Calcutá dá vida aos pobres e aos ricos. Vinte variedades ao alcance de todas as bolsas. Receitas originais da Madre Teresa.”
― Acho que está feito com muito bom gosto ― disse Harrison.
Marcantonio limitou-se a arquear as sobrancelhas.
Harrison introduziu nova fita. Uma imagem deslumbrante da princesa Diana no seu vestido de noiva encheu a tela, seguida por fotografias dela em Buckingham Palace, e depois a dançar com o príncipe Carlos, rodeados pelo seu séquito real, tudo passado num ritmo frenético.
A voz off declara: “Todas as princesas merecem o seu príncipe. Mas esta tinha um segredo.” Uma jovem modelo mostra um elegante frasco de cristal, com o rótulo claramente visível. A voz off prossegue: “Com um toque de Princess também você pode conquistar o seu príncipe. E nunca terá de preocupar-se com o odor vaginal.”
Marcantonio premiu um botão da consola que tinha em cima da secretária e a tela ficou negra.
― Espera, ainda há mais - pediu Harrison.
Marcantonio abanou a cabeça.
― Richard, és espantosamente inventivo... e espantosamente insensível. Esses anúncios nunca passarão na minha rede.
― Mas uma parte dos lucros vai para obras de caridade... E são todos de bom gosto ― protestou Harrison. ― Tinha esperança que desses o exemplo. Ao fim e ao cabo, somos bons amigos.
― Claro que somos ― concordou Marcantonio. ― Mas a resposta continua a ser não.
Harrison abanou a cabeça e, lentamente, voltou a guardar os vídeos na caixa.
― A propósito ― perguntou Marcantonio, sorrindo ―, como é que resultou o spot do Gorbachev.
Harrison encolheu os ombros.
― Uma miséria. O desgraçado nem para vender pizzas serve.
Marcantonio despachou outros assuntos e preparou-se para os seus deveres noturnos. Nessa noite, estaria presente na distribuição dos Emmys. A rede tinha três mesas reservadas para os diretores e principais estrelas, e várias nomeações. A sua companheira seria Matilda Johnson, uma jornalista muito conhecida.
Contíguo ao gabinete havia um quarto e cama com casa de banho e um armário cheio de roupa. Dormia ali muitas vezes, quando precisava de trabalhar até tarde.
Durante a cerimônia, foi referido por alguns vencedores como tendo sido importante para os respectivos êxitos. Era sempre agradável. Mas enquanto batia palmas e distribuía beijos, pensou em todas as festas de entrega de prêmios e jantares a que tivera de assistir durante aquele ano: os Oscars, os People's Choice Awards, os tributos e homenagens a artistas, produtores e realizadores em fim de carreira. Sentia-se como um professor a distribuir prêmios por trabalhos de casa a miúdos da escola primária que iam depois a correr mostrá-los às mães. E então sentiu uma fugaz ponta de vergonha pelo seu cinismo: todas aquelas pessoas mereciam as honras que lhes eram prestadas, precisavam da aprovação dos seus pares tanto como do dinheiro.
Terminada a cerimônia, divertiu-se a ver os atores principiantes tentarem impressionar pessoas importantes como ele próprio, que tinham poder, e a editora de uma grande revista a ser cortejada por um enxame de escritores free-lance. Notou a indiferença no rosto dela, a sua fria e cautelosa cordialidade, como uma Penélope à espera de um pretendente mais adequado.
Depois havia os pivots, os pesos-pesados, homens e mulheres inteligentes, carismáticos e talentosos que enfrentavam o delicado dilema de seduzir as estrelas que queriam entrevistar e ao mesmo tempo desencorajar aquelas que não eram ainda suficientemente importantes.
Os grandes nomes da pequena tela irradiavam esperança e desejo. Eram já suficientemente famosos para darem o salto da TV para o cinema e nunca mais voltarem ― ou pelo menos assim pensavam.
Finalmente, Marcantonio ficou exausto; o estar continuamente a sorrir com entusiasmo, o tom reconfortante que era preciso usar para com os que tinham perdido, a nota de exuberância para com os vencedores, tudo isso lhe esgotara as forças. Matilda murmurou-lhe ao ouvido:
― Vais até minha casa, um pouco mais tarde?
― Estou cansado ― disse Marcantonio. ― Foi um dia duro, uma noite dura.
― Não faz mal ― respondeu ela, compreensiva. Ambos tinham horários muito apertados. ― Vou estar por cá a semana toda.
Eram bons amigos porque não tinham de servir-se um do outro. Matilda era uma mulher cheia de segurança. Não precisava de patronos nem de mentores. E Marcantonio nunca participava nas negociações com os novos talentos. Esse trabalho competia ao diretor de Relações Comerciais. O tipo de vida que ambos faziam nunca poderia resultar em casamento. Matilda viajava constantemente. Ele trabalhava quinze horas por dia. Mas eram amigos que por vezes passavam a noite juntos. Faziam amor, trocavam mexericos profissionais e apareciam juntos em alguns eventos sociais. Estava perfeitamente claro para ambos que aquilo que tinham era uma relação secundária. Das poucas vezes que Matilda se apaixonara por outros homens, tinham interrompido os seus encontros. Marcantonio nunca se apaixonava, de modo que isso não constituía problema para ele.
Naquela noite, sentia-se moderadamente farto do mundo em que vivia. Ficou quase encantado ao encontrar Astorre à espera no vestíbulo do prédio de apartamentos onde residia.
― Eh, ainda bem que apareceste! ― exclamou. ― Onde é que tens andado?
― Ocupado ― respondeu Astorre. ― Posso subir para uma bebida?
― Claro. Mas porquê esse ar de capa e espada? Por que não telefonaste? Podias ter ficado aqui horas à espera. Eu era para ter ido a uma festa.
― Não há problema. ― Astorre sorriu. Tivera o primo sob vigilância durante toda a noite. No apartamento, Marcantonio preparou bebidas para ambos. Astorre parecia um pouco embaraçado.
― Podes lançar projetos na tua rede, não é verdade? ― perguntou. É o que estou constantemente a fazer.