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A filha Nicole ― a quem em criança todos chamavam afetuosamente Nikki mas que, aos seis anos, exigira imperiosamente ser tratada pelo seu verdadeiro nome ―, com quem o pai adorava discutir, era, aos vinte e nove anos, advogada especializada em direito empresarial, feminista e defensora “pro bono” daqueles pobres e desesperados criminosos que de outro modo não poderiam suportar as despesas de uma ajuda legal adequada. Era particularmente hábil a salvar assassinos da cadeira-elétrica, a poupar à indignidade da prisão as mulheres que, cansadas de aturar os maridos, tinham resolvido livrar-se deles da maneira mais expedita e a evitar que violadores contumazes passassem o resto da vida numa cela. Opunha-se inabalavelmente à pena de morte, acreditava na possibilidade de reabilitação de qualquer criminoso e era uma crítica severa da estrutura econômica dos Estados Unidos. Pensava que um país tão rico como a América não devia ser tão indiferente à sorte dos pobres, por grandes que fossem os seus defeitos. Apesar de tudo isto, era uma astuta e dura negociadora de direito empresarial, uma mulher notável e enérgica. Ela e o Don discordavam em tudo.

Quanto a Astorre, fazia parte da família, e era, como sobrinho titular; o mais próximo do Don. Mas parecia, pela sua intensa vitalidade e encanto, irmão dos outros. Dos três aos dezesseis anos vivera com eles ― o adorado irmão mais novo ― até que, havia já onze anos, se exilara na Sicília. Ao reformar-se, o Don mandou-o regressar.

Don Aprile planeara meticulosamente a sua retirada. Distribuíra o seu império para aplacar potenciais inimigos, mas também prestara tributo a amigos leais, sabendo que a gratidão é a menos duradoura das virtudes e que as dádivas têm de ser constantemente renovadas. Dedicara um especial cuidado ao apaziguamento de Timmona Portella. Portella era perigoso devido à sua excentricidade e a um apaixonado instinto assassino que por vezes não tinha qualquer relação com a necessidade.

Como conseguira escapar ao FBI durante a ofensiva dos anos 90 era algo que ninguém sabia. Porque Portella era um Don nascido na América, um homem desprovido de sutileza, incauto e imoderado, com um temperamento explosivo. Muito alto e gordo, com um ventre proeminente, vestia como um PI . Natural de Palermo, um jovem aprendiz de assassino, todo cores garridas e sedas. O seu poder baseava-se na distribuição de drogas ilegais. Nunca casara, mas aos cinqüenta e cinco anos continuava a ser um mulherengo incorrigível. Só demonstrava verdadeiro afeto para com o irmão mais novo, Bruno, que parecia sofrer de um ligeiro atraso mental mas partilhava a brutalidade do mais velho.

Don Aprile nunca confiara em Portella e raramente fazia negócios com ele. Era um indivíduo que a própria fraqueza tornava perigoso, alguém que tinha de ser neutralizado. Por isso o convidou para um encontro em sua casa.

Portella chegou acompanhado pelo irmão. Don Aprile recebeu-os com a tranqüila cortesia que usava para com todos, mas foi diretamente ao assunto.

― Meu caro Timmona, vou retirar-me de todos os meus negócios, exceto os bancos ― anunciou. ― A partir de agora, todas as atenções vão concentrar-se em si, de modo que terá de ter muito cuidado. Se alguma vez precisar de um conselho, não hesite em procurar-me. Porque não estarei completamente desmunido de recursos no meu afastamento.

Bruno, uma cópia em ponto pequeno do irmão, que estava deslumbrado pela reputação do Dom, sorriu satisfeito ante esta prova de respeito. Mas Timmona era muito mais esperto, e compreendeu. Soube que estava a ser avisado.

Assentiu respeitosamente com a cabeça.

― Sempre foi, de todos nós, o mais avisado ― declarou. ― E eu respeito o que está a fazer. Conte-me entre os seus amigos.

― Ótimo, ótimo ― disse o Don. ― Agora, como um presente meu para si, escute este aviso. O homem do FBI, Cilke, é muito tortuoso. Não confie nele seja de que maneira for. Está embriagado pelo êxito, e vai escolhê-lo a si como próximo alvo.

― Mas nós os dois já lhe escapamos ― respondeu Timmona. Apesar de ter apanhado todos os nossos amigos. Não tenho medo dele, mas agradeço-lhe.

Tomaram uma bebida cerimonial e os irmãos Portella retiraram-se. já no carro, Bruno exclamou:

― Que grande homem!

― Sim ― concordou Timmona. ― Foi um grande homem.

Quanto ao Dom estava satisfeito consigo mesmo. Vira o alarme nos olhos de Timmona, e teve a certeza de que não voltaria a representar um perigo para ele.

Don Aprile solicitou um encontro particular com Kurt Cilke, o chefe da delegação do FBI em Nova Iorque. Era, para espanto do próprio Dom um homem que admirava. Mandara para a prisão a maior parte dos chefes da Máfia da Costa Leste e quase quebrara o seu poder.

Don Raymonde Aprile conseguira escapar-lhe porque conhecia a identidade do seu informador secreto, a pessoa que tornara possível aquele êxito. Mas admirava Cilke sobretudo por ser um homem que fazia sempre jogo limpo, que nunca tentara falsas incriminações ou abusos de poder, e nunca pusera o mais pequeno labéu público nos seus filhos. Por isso considerou que era de toda a justiça avisá-lo.

O encontro foi marcado para a casa de campo do Dom em Montauk. Cilke teria de ir sozinho, o que infringia as regras do Bureau. O próprio diretor do FBI dera a sua aprovação, mas insistira em que o agente usasse um aparelho de escuta especial, um implante por baixo da caixa torácica, que não deixaria quaisquer vestígios detectáveis do exterior. Tratava-se de um dispositivo desconhecido do público, cuja fabricação era estritamente controlada. Cilke compreendeu que o verdadeiro objetivo era gravar tudo o que Don Aprile dissesse.

Encontraram-se, numa dourada tarde de Outono, no vasto alpendre que rodeava a casa. Cilke nunca conseguira ali entrar com um aparelho de escuta, e um juiz proibira uma vigilância física permanente. Dessa vez, os homens do Don não o revistaram fosse de que maneira fosse, o que o surpreendeu. Obviamente, Don Raymonde Aprile não se preparava para fazer-lhe qualquer proposta ilícita.

Como sempre, Cilke ficou surpreendido, e até um pouco perturbado, pela impressão que o Don lhe causava. Apesar de saber que aquele homem ordenara centenas de assassínios, violara incontáveis leis da sociedade, não conseguia odiá-lo. E no entanto, acreditava que pessoas como ele eram a encarnação do Mal, e detestava-as por destruírem a própria tessitura da civilização.

Don Aprile vestia um fato escuro, gravata preta e camisa branca. A sua expressão era grave e todavia cheia de compreensão, as linhas suaves do rosto as de um homem amante da virtude. Como podia uma face tão humana pertencer a alguém tão implacável, perguntou Cilke a si mesmo.

O Don não lhe estendeu a mão, por uma questão de sensibilidade e para não o embaraçar. Indicou-lhe com um gesto um dos amplos cadeirões do alpendre e inclinou a cabeça num cumprimento silencioso.

― Decidi colocar-me e à minha família sob a sua proteção... quero dizer, sob a proteção da sociedade ― declarou.

Cilke ficou atônito. Que diabo quereria o velho dizer com aquilo?

― Durante os últimos vinte anos, considerou-se meu inimigo. Perseguiu-me. Mas eu sempre lhe fiquei grato pelo seu sentido de lealdade. Nunca tentou falsificar provas nem encorajou o perjúrio contra mim. Mandou a maior parte dos meus amigos para a prisão e tentou o mais possível fazer-me o mesmo a mim.

― Continuo a tentar ― disse Cilke, sorrindo.

O Don assentiu com a cabeça.

― Larguei tudo o que pudesse parecer duvidoso. Conservo apenas alguns bancos, um negócio incontestavelmente honesto. Coloquei-me sob a proteção da sua sociedade. Em troca, cumprirei o meu dever para com essa sociedade. Poderá tornar tudo muito mais fácil deixando de perseguir-me. já não há qualquer necessidade.