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Cilke encolheu os ombros.

― O Bureau decide. Ando atrás de si há tanto tempo, por que hei de parar agora? Pode ser que tenha sorte.

O rosto do Dom tornou-se mais grave, a sua expressão ainda mais cansada.

― Tenho uma coisa para lhe oferecer em troca. O seu enorme êxito nestes últimos anos influenciou a minha decisão. Mas o que se passa é que conheço o seu principal informador, sei quem ele é. E nunca o disse a ninguém.

Cilke hesitou apenas um segundo antes de responder, impassíveclass="underline"

― Não tenho nenhum informador. E mais uma vez, é o Bureau. que decide, não eu. Fez-me perder o meu tempo.

― Não, não ― protestou o Don. ― Não procuro uma vantagem, apenas um acordo. Permita-me, em atenção à minha idade, dizer-lhe uma coisa que aprendi . Nunca exerça o poder só, porque ele está facilmente ao alcance da sua mão, e nunca se deixe embalar na certeza da vitória quando o seu intelecto lhe disser que há nem que seja uma sugestão de desastre. Deixe-me dizer-lhe que o vejo agora como um amigo, não como um inimigo, e pense no que tem a ganhar ou a perder recusando esta oferta.

― Se realmente se afastou, de que me servirá a sua amizade? ― perguntou Cilke, sorrindo.

― Terá a minha boa vontade ― respondeu o Don. ― Isso vale sempre qualquer coisa, mesmo vindo do mais insignificante dos homens.

Mais tarde, Cilke passou a gravação para Bill Boxton, o seu ajudante, que perguntou: ― Que raio de conversa é essa?

― É uma das coisas que tens de aprender ― disse-lhe Cilke. ― Estava a dizer-me que não está completamente indefeso, que vai manter-me debaixo de olho.

― Tretas! ― exclamou Boxton. ― Não se atreveriam a tocar num agente federal.

― Pois não ― admitiu Cilke. ― É por isso que vou continuar atrás dele, reformado ou não. No entanto, estou preocupado. Não podemos estar cem por cento seguros...

Estudioso atento da história das mais prestigiadas famílias americanas, desses barões-gatunos que construíram implacavelmente as suas fortunas violando todas as leis morais e éticas da sociedade humana, Don Aprile tornou-se, como eles, um filantropo. Como eles, tinha um império: dez bancos privados nas maiores cidades do mundo. Por isso deu generosamente para construir um hospital destinado aos pobres. Foi um mecenas. Fundou uma cátedra na Universidade de Columbia para o estudo da Renascença.

É verdade que Yale e Harvard recusaram os seus vinte milhões de dólares para um dormitório a que seria dado o nome de Cristóvão Colombo, na altura muito contestado nos círculos intelectuais. Yale oferecera-se para aceitar o dinheiro e chamar ao dormitório Sacco e Vanzetti, mas o Don não estava interessado em Sacco e Várizetti. Desprezava os mártires.

Como provavelmente poucos estarão, sendo até possível que já não se saiba quem foram. Nicola Sacco e Bartolomeo Várizetti, um sapateiro, o outro vendedor de peixe, imigrantes italianos e anarquistas, foram acusados de assassínio, julgados e condenados à morte num julgamento cujo rigor processual levantou na altura enormes dúvidas e dividiu a opinião pública americana. Culpados ou não, ficaram como símbolo da xenofobia de uma América anglo-saxônica e protestante.

Um homem de menor estatura ter-se-ia sentido insultado e guardado rancor, mas não Don Raymonde Aprile. Em vez disso, deu o dinheiro à Igreja Católica para que fossem rezadas missas diárias por alma de sua mulher, que fôra fazia já vinte e cinco anos ocupar o lugar que lhe estava reservado no Paraíso.

Doou um milhão de dólares à Associação Benevolente da Polícia de Nova Iorque e outro milhão a uma sociedade de proteção aos imigrantes ilegais. Durante três anos depois de se ter retirado, espalhou as suas benesses pelo mundo. A sua bolsa estava aberta a todas as solicitações exceto uma. Recusou o pedido de Nicole de uma contribuição para a Campanha Contra a Pena de Morte ― a cruzada da filha para pôr fim ao castigo máximo.

É espantoso como três anos de boas ações e generosidade quase conseguem apagar uma reputação de trinta e quatro anos de gestos implacáveis. Mas a verdade é que os grandes homens sempre compraram e continuam a comprar a boa vontade dos outros, o perdão por terem traído os amigos e exercido julgamentos impiedosos. Também o Don padecia desta fraqueza universal.

Porque Don Ramonde Aprile era um homem que tinha vivido segundo as regras estritas da sua moralidade particular. O seu código tornara-o respeitado durante mais de trinta anos e gerara o medo extraordinário que fora a base do seu poder. Uma das regras básicas desse código era uma absoluta ausência de piedade.

Isto não decorria de uma crueldade inata, de um desejo psicopático de infligir dor, mas de uma convicção profunda. a de que os homens se recusam sempre a obedecer. Até Lúcifer, o anjo, desafiara Deus e fora precipitado nos infernos.

Por isso, um homem ambicioso que lutasse pelo poder não tinha outra alternativa. Claro que havia algumas persuasões, algumas concessões aos interesses de outros homens. Era razoável. Mas se tudo falhasse, restava apenas o castigo definitivo. Nunca fazer ameaças nem aplicar outras punições que pudessem inspirar retaliação. Os inimigos deviam ser pura e simplesmente banidos da esfera terrestre, e depois esquecidos.

A traição era a maior das ofensas. A família do traidor sofreria as conseqüências, bem como o seu círculo de amigos mais chegados; todo o seu mundo seria destruído. Porque há muitos homens bravos e orgulhosos dispostos a arriscar a vida para lucrar qualquer coisa, mas mesmo esses pensariam duas vezes antes de arriscarem a dos seres amados. E assim, deste modo, Don Aprile gerara ao longo dos anos uma enorme quantidade de terror. Contava agora com a sua generosidade em bens terrenos para conquistar o amor, todavia menos necessário, dos que o rodeavam.

Diga-se no entanto, em abono da verdade, que era implacável até consigo mesmo. Detentor de um incomensurável poder, fôra impotente para impedir a morte da sua jovem esposa depois de ela lhe ter dado três filhos. Morrera de uma morte lenta e horrível, vítima de cancro, e Don Aprile velara por ela instante a instante durante seis meses. Nessa altura, convencera-se de que a mulher estava a ser castigada por todos os pecados mortais que ele cometera, e conseqüentemente decretara a sua própria penitência: não voltaria a casar. Afastaria os filhos de si, para que fossem educados no respeito das regras da sociedade e não crescessem naquele seu mundo tão cheio de ódio e de perigo. Ajuda-los-ia. a encontrar o seu próprio caminho, mas nunca os envolveria nas suas atividades. Com profunda tristeza, resolvera que nunca conheceria a verdadeira essência da paternidade.

Mandara, pois, Nicole, Valerius e Marcantonio para colégios internos. Nunca os deixara participar da sua vida pessoal. Iam a casa nas férias, e ele fazia o papel de pai atento mas distante, mas nunca se tinham tornado parte do seu mundo.

E no entanto, apesar de conhecerem a sua reputação, os filhos arriavam-no. Nunca falavam sobre o assunto uns com os outros. Era um desses segredos de família que não são segredo.

Ninguém poderia acusar o Don de ser um sentimental. Tinha muito poucos amigos pessoais, nenhum animal de estimação, e evitava as festas e reuniões sociais o mais que podia. Só uma vez, muitos anos antes, tivera um gesto de compaixão que espantara os seus colegas americanos.

Ao regressar da Sicília com o filho de Don Zeno, Astorre, encontrara a mulher a morrer de cancro e os seus próprios filhos desolados. Não querendo conservar a impressionável criança junto de si naquelas circunstâncias, com receio de que isso pudesse prejudicá-la de algum modo, resolvera confiá-la aos cuidados de um dos seus conselheiros mais chegados, um homem chamado Frank Viola, e da mulher. Fôra uma escolha infeliz. Na altura, Frank Viola alimentava ambições de suceder ao Don.