Выбрать главу

No entanto, pouco depois de a esposa de Don Aprile ter morrido, Astorre Viola, com três anos, passara a fazer parte da família pessoal do Dom. O “pai” suicidara-se dentro do porta-bagagens de um carro, uma circunstância certamente curiosa, e a mãe morrera vítima de uma hemorragia cerebral. Fora então que Don Aprile levara Astorre para sua casa e assumira o título de tio.

Quando Astorre chegara à idade de começar a fazer perguntas a respeito dos pais, Don Aprile explicara-lhe que era órfão. Mas Astorre era um rapazinho curioso e tenaz, de modo que o Dom, farto de tanta pergunta, disse-lhe que os pais eram uns camponeses muito pobres, sem meios para criá-lo, que tinham morrido, ignorados de todos, numa pequena aldeia da Sicília. Sabia que a explicação não satisfaria inteiramente o rapaz, e sentiu uma ponta de remorso por estar a enganá-lo, mas também sabia que era importante, enquanto Astorre fosse criança, esconder-lhe a verdade sobre o seu nascimento. Para seu próprio bem e para bem dos “primos”.

Don Raymonde Aprile era um homem de visão e sabia que a sua sorte podia não durar sempre ― o mundo era demasiado traiçoeiro. Planeara desde o início mudar de campo, aproveitar a segurança da sociedade organizada. Não que tivesse realmente consciência deste propósito, mas os grandes homens sabem instintivamente o que o futuro vai exigir. E, naquele caso, agira verdadeiramente por compaixão. Porque Astorre Viola, com três anos, não podia causar qualquer impressão, não podia dar a mais pequena sugestão daquilo em que se tornaria quando fosse homem. Ou da importância do papel que havia de desempenhar no seio da Família.

O Don compreendera que a glória da América era a emergência de grandes famílias, e que as melhores classes sociais nasciam de homens que tinham começado por cometer grandes crimes contra a sociedade. Tinham sido homens desses que, na busca de fortuna, tinham igualmente construído a América e deixado que as suas más ações se desfizessem em pó e fossem esquecidas.

De que outra maneira poderia ter sido feito? Deixar as grandes planícies àqueles índios que não eram capazes de conceber um simples prédio de três andares? Deixar a Califórnia aos mexicanos, que não tinham qualquer espécie de capacidade técnica nem a visão de grandes aquedutos para levar água a terras que permitiriam a milhões de pessoas gozarem uma vida próspera? A América tinha o condão de atrair milhões de pobres vindos dos quatro cantos do mundo, de incitá-los a deitar mãos ao duro e necessário trabalho de construir as vias férreas, as barragens, os arranha-céus. Ah, a Estátua da Liberdade fôra um golpe de gênio publicitário. E não fôra tudo pelo melhor? Claro que houvera tragédias, mas isso fazia parte da vida. Não seria a América a maior cornucópia que o mundo jamais conhecera? Não seria um pouco de injustiça um pequeno preço a pagar por tudo isso? Sempre os indivíduos tinham tido de sacrificar-se para permitir o progresso da civilização e da sociedade.

Há, no entanto, outra definição de um grande homem. Essencialmente, aquele que não aceita essa carga. Aquele que de uma ou de outra forma, criminosa, imoral, ou simplesmente astuciosa, cavalga a crista dessa onda de progresso humano- sem ter de se sacrificar.

Don Raymonde Aprile era um desses homens. Criara o seu próprio poder à força de inteligência e de uma total ausência de piedade. Gerara medo, tornara-se uma lenda. Mas os filhos, quando cresceram, nunca acreditaram nas histórias mais atrozes.

Havia a lenda a respeito do começo do seu reinado como chefe da Família. Don Aprile controlava uma empresa de construção civil gerida por um subordinado, Tommy Liotti, que enriquecera muito novo graças aos contratos públicos conseguidos pelo seu mentor. O homem era bem-parecido, vivo de espírito, perfeitamente encantador, e o Don sempre apreciara a sua companhia. Tinha apenas um defeito: bebia em excesso.

Tommy casara com Liza, a melhor amiga da mulher do Dom, uma bela rapariga à moda antiga, a quem Deus dera uma língua afiada e que passara a considerar seu dever, uma vez casada, moderar um pouco os prazeres do esposo. O que, inevitavelmente, levou a alguns acidentes desagradáveis. Tommy aceitava-lhe os remoques com bastante equanimidade quando estava sóbrio, mas se tinha bebido, respondia com estaladas suficientemente fortes para fazê-la morder a língua.

Ora, dava-se a infeliz circunstância de o marido ser um homem fisicamente poderoso, devido sem dúvida ao fato de ter trabalhado forte e feio na construção civil quando era jovem. A verdade é que usava sempre camisas de manga curta para poder exibir a magnífica e impressionante musculatura dos braços.

Desgraçadamente, estes incidentes foram crescendo em gravidade ao longo de dois anos. Certa noite, Tommy partiu o nariz a Liza e fez-lhe saltar vários dentes, o que exigiu reparações cirúrgicas de alguma envergadura. Liza não se atreveu a pedir proteção à esposa de Don Aprile, pois sabia perfeitamente que um tal pedido teria como resultado mais provável deixá-la viúva e, por razões insondáveis, continuava a amar o marido.

Don Aprile não tinha a menor inclinação para imiscuir-se nas disputas domésticas dos seus subordinados. Problemas desses nunca têm solução. Se o marido tivesse morto a mulher, não se teria preocupado. Mas aquelas sovas representavam um perigo para as suas relações comerciais. Uma mulher enraivecida podia prestar certos testemunhos, dar informações prejudiciais. Sobretudo porque Tommy tinha sempre em casa grandes somas em dinheiro destinadas a esses subornos ocasionais tão necessários à concretização de contratos públicos.

Tudo isto decidiu Don Aprile a chamar Tommy à sua presença.

Com a máxima delicadeza, deixou bem claro que só interferia na vida pessoal do homem porque o que se estava a passar afetava os negócios. Aconselhou Tommy a matar a mulher de uma vez por todas ou a divorciar-se dela, mas a nunca mais a maltratar. Tommy jurou que não voltaria a acontecer. Mas o Don ficou desconfiado. Notara um certo brilho nos olhos do homem, o brilho de uma vontade livre. Para ele, o fato de as pessoas insistirem em fazer o que queriam sem terem em conta as conseqüências constituía um dos mais insondáveis mistérios da vida. Os grandes homens aliam-se aos anjos apesar do preço terrível que têm de pagar. Os homens maus satisfazem os seus mais insignificantes prazeres aceitando em troca a condenação às chamas eternas do inferno.

Foi o que aconteceu com Tommy Liotti. Demorou quase um ano, durante o qual a indulgência do esposo pareceu só servir para tornar ainda mais afiada a língua de Liza. Apesar do aviso do Dom, apesar do amor que lhe tinha a ela e aos filhos, Tommy bateu-lhe de uma forma extremamente violenta. Liza foi parar ao hospital, com algumas costelas partidas e um pulmão perfurado.

Graças à sua riqueza e aos seus contatos políticos, Tommy comprou um dos juízes do Don com um suborno enorme. Depois, convenceu a mulher a voltar para junto dele.

Don Aprile observou tudo isto com alguma irritação e, a contragosto, resolveu chamar a si a resolução daquele assunto. Em primeiro lugar, tratou dos aspectos práticos da questão. Obteve uma cópia do testamento de Tommy e ficou a saber que, como qualquer bom chefe de família, deixava todos os seus bens terrenos à mulher e aos filhos. Liza ia ser uma viúva rica. Depois, despachou uma equipe especial com instruções específicas. Uma semana mais tarde, o juiz recebeu uma comprida caixa embrulhada em papel de prenda e fitas de cor, e dentro dela, como um par de compridas luvas de seda, os dois grossos antebraços de Tommy, um deles usando ainda no pulso o valioso Rolex que o Don lhe oferecera anos antes como testemunho da sua estima. No dia seguinte, o resto do corpo foi encontrado a flutuar no rio, perto de Verrazano Bridge.