Chegou ao aeroporto ao princípio da noite. Despachou no check-in duas malas, tudo o que precisava, além dos cem mil dólares em notas de cem que tinha presos ao corpo com fita gomada, metidos em pequenas bolsas. Estava bem preparado para as primeiras despesas, e dispunha ainda de uma conta secreta nas ilhas Caymans, com quase cinco milhões de dólares. Graças a Deus, porque com toda a certeza não poderia concorrer à Segurança Social. Orgulhava-se deter vivido uma vida prudente, em vez de esbanjar o seu dinheiro ao jogo, com mulheres ou outras idiotices.
Feito o check-in e na posse do cartão de embarque, ficou apenas com uma pequena pasta com os seus documentos de identidade e os passaportes falsos. Deixara o carro no parque permanente; a ex-mulher iria buscá-lo mais tarde.
Faltava ainda pelo menos uma hora para o vôo. Sentiu-se ligeiramente pouco à vontade por estar desarmado, mas teria de passar pelos detectores para entrar no avião, e além disso poderia ― conseguir todas as armas que quisesse através dos seus contatos na Cidade do México.
Para matar o tempo, comprou algumas revistas na livraria e dirigiu-se ao restaurante do terminal. Carregou uma bandeja com uma fatia de bolo e café e sentou-se a uma das pequenas mesas. Folheou as revistas e comeu o bolo, uma falsa torta de morango coberta com creme de pasteleiro. Subitamente, teve consciência de que alguém se sentara à sua mesa. Ergueu os olhos e viu a detetive Aspinella Washington. Como toda a gente, ficou fascinado pela pala quadrada, verde-escura, que lhe tapava a órbita vazia. Sentiu uma onda de pânico. A mulher pareceu-lhe muito mais bonita do que se lembrava.
― Olá, John ― disse ela. ― Nunca foste visitar-me ao hospital.
Heskow estava tão desorientado que a levou a sério.
― Sabe bem que não podia fazer uma coisa dessas, detetive Washington. Mas lamentei muito saber do seu acidente.
Aspinella dirigiu-lhe um grande sorriso.
― Estava a brincar, John. Mas gostaria de ter uma conversinha contigo antes do teu vôo.
― Claro ― respondeu Heskow. Contava sempre com a necessidade de subornar alguém, e tinha na pasta dez mil dólares preparados precisamente para uma contingência desse tipo. ― Gosto de vê-la com tão bom aspecto. Estava preocupado consigo.
― A sério? ― exclamou Aspinella, e o seu único olho brilhou como o de um falcão. ― Foi uma pena, aquilo do Paul. Éramos bons amigos, sabes, além de ele ser o meu chefe.
― Foi uma grande pena, é verdade ― concordou Heskow. Teve até um pequeno soluço, que fez Aspinella sorrir.
― Não preciso de mostrar-te o meu distintivo, pois não? ― continuou ela. Fez uma pausa. ― Quero que venhas comigo até uma salinha de interrogatórios que temos aqui no terminal. Dá-me algumas respostas interessantes, e podes apanhar o teu avião.
― OK. ― disse Heskow. E pôs-se de pé, pegando na pasta.
― E nada de brincadeiras, ou dou-te um tiro. Queres saber uma coisa engraçada? Atiro ainda melhor agora que tenho só um olho. Levantou-se também, pegou-lhe por um braço e subiu com ele até à ária superior onde se situavam os serviços administrativos das companhias de aviação. Conduziu-o ao longo de um comprido corredor e abriu uma porta. Heskow ficou surpreendido não só pelo tamanho da sala, mas também pelos painéis de monitores de TV, pelo menos vinte, montados nas paredes e vigiados por dois homens que, sentados em cômodas cadeiras de braços, os observavam enquanto comiam sanduíches e bebiam café. Um deles levantou-se e disse:
― Olá, Aspinella. O que é que há?
― Vou ter uma conversa particular com este tipo na sala de interrogatórios. Fecha-nos a porta.
― Certo ― respondeu o homem. ― Queres que um de nós fique contigo?
― Não. É só uma conversa amigável.
― Oh, uma das tuas famosas conversas amigáveis ― disse o homem, com uma gargalhada. Olhou atentamente para Heskow. ― Vi-o num dos monitores do terminal. Torta de morango, não foi? ― Conduziu-os até uma porta ao fundo da sala e abriu-a. Depois de Heskow e Aspinella terem entrado, voltou a fechá-la à chave.
Heskow sentiu-se tranqüilizado, sabendo que havia outras pessoas envolvidas. A sala de interrogatórios era desarmante, com um sofá, uma secretária e três cadeiras de aspecto confortável. Num dos cantos havia um distribuidor de água com copos de papel. As paredes cor-de-rosa estavam decoradas com fotografias e desenhos de máquinas voadoras.
Aspinella empurrou-o para a cadeira colocada diante da secretária sobre cujo tampo se sentou, olhando-o de cima para baixo.
― Podemos ir ao assunto? ― perguntou Heskow. ― Não quero perder o meu vôo.
Aspinella não respondeu. Estendeu um braço e pegou na pasta que ele tinha no colo. Heskow contorceu-se na cadeira. Ela abriu a pasta e remexeu o seu conteúdo, incluindo os maços de notas de cem dólares. Estudou um dos passaportes falsos, voltou a meter tudo dentro da pasta e devolveu-a. ― És um homem esperto ― disse. ― Sabias que era altura de desaparecer. Quem te avisou de que eu andava atrás de ti?
― Por que havia de andar atrás de mim? ― perguntou Heskow. Sentia-se mais confiante, agora que ela lhe devolvera a pasta.
Aspinela levantou a pala verde, para que ele pudesse ver a feia cratera. Mas Heskow nem pestanejou: tinha visto muito pior, nos seus tempos. ― Custaste-me um olho ― afirmou ela. ― Só tu podias ter-me denunciado a mim e ao Paul.
Heskow falou com a mais absoluta sinceridade, desde sempre um dos seus melhores trunfos na atividade a que se dedicava:
― Está enganada, completamente enganada. Se tivesse feito uma coisa dessas, teria ficado com o dinheiro... com certeza compreende isso. Ouça, tenho mesmo de apanhar aquele vôo. ― Desabotoou a camisa e arrancou um pedaço de fita gomada. Dois maços de notas apareceram em cima da mesa. ― É seu, e o dinheiro que está na pasta. São trinta mil.
― Epa! ― exclamou Aspinella. ― Trinta mil. Uma porção de massa só por um olhozito. OK. Mas tens de dizer-me o nome do tipo que te pagou para nos armares a cilada.
Heskow tomou uma decisão. A sua única possibilidade era ir naquele avião. Sabia que ela não estava a fazer bluff. Lidara com demasiados maníacos homicidas no exercício da sua profissão para se enganar a respeito daquela.
― Ouça, acredite em mim ― disse. ― Nunca me passou pela cabeça que aquele tipo fosse liquidar dois polícias de alta patente. Só fiz um acordo com o Astorre Viola para que ele pudesse esconder-se. Nunca sonhei que fizesse uma coisa daquelas.
― Ótimo. Agora diz-me, quem pagou o golpe contra ele?
― O Paul sabia ― respondeu Heskow. ― Não lhe disse? Foi o Timmona Portella.
Aspinella sentiu uma onda de raiva invadi-la. O seu gordo parceiro fora não só uma desilusão na cama como ainda por cima um sacana de um mentiroso.
― Levanta-te ― ordenou. Subitamente, aparecera uma arma na sua mão. Heskow ficou aterrorizado. Já vira aquela expressão noutras ocasiões, com a diferença de que não fora ele a vítima. Por um instante, pensou nos seus cinco milhões de dólares, que morreriam com ele, sem ninguém que os reclamasse, e aqueles cinco milhões pareceram-lhe uma criatura viva. Que tragédia.
― Não! ― gritou, e encolheu-se ainda mais na cadeira.
Ela agarrou-o pelos cabelos com a mão livre e obrigou-o a levantar-se. Manteve a arma afastada do pescoço dele e disparou. Heskow pareceu voar-lhe da mão e tombou no chão. Ajoelhou-se ao lado do corpo. Metade da garganta tinha sido arrancada pela bala. Tirou então a arma extra do coldre do tornozelo, meteu-a na mão de Heskow e pôs-se de pé. Ouviu a chave girar na fechadura, e os dois outros polícias irromperam na sala, de armas empunhadas.