O sr. Pryor sorriu-lhe. ― Estamos imaculados.
Depois de Cilke sair, o sr. Pryor recostou-se na cadeira. A situação estava a tornar-se alarmante. E se chegassem a Rosie? Suspirou. Que pena. Ia ter de fazer alguma coisa a esse respeito.
Quando Cilke notificou Nicole que de que a queria a ela e ao primo no seu gabinete na manhã seguinte, ainda não compreendia verdadeiramente o caráter de Astorre, nem queria compreender. Apenas sentia por ele o mesmo desprezo que por qualquer pessoa que violasse a lei. Não compreendia o espírito de um verdadeiro mafioso.
Astorre acreditava na velha tradição. Os seus homens amavam-no não só pelo seu carisma, mas porque punha a honra acima de tudo.
Um verdadeiro mafioso era suficientemente forte na sua vontade para vingar qualquer insulto feito à sua pessoa ou à sua cosca. Nunca se submeteria à vontade de outro homem ou de qualquer agência do governo. E era essa a base do seu poder. A sua vontade era soberana; a justiça era aquilo que ele decretava que devia ser. O fato de ter salvo a família de Cilke fora um gesto de fraqueza. Mesmo assim, quando se dirigiu com Nicole ao gabinete de Cilke, ia vagamente à espera de algum agradecimento, de um relaxar de animosidade por parte do agente do FBI.
Tornou-se imediatamente evidente que tinham sido feitos preparativos cuidadosos para recebê-los. Dois guardas revistaram-no e a Nicole antes de entrarem no gabinete. O próprio Cilke esperava-os de pé atrás da sua secretária. Sem o mais pequeno indício de cordialidade, indicou-lhes as cadeiras. Um dos guardas fechou a porta à chave e postou-se junto dela.
― Isto está a ser gravado? ― perguntou Nicole.
― Sim ― respondeu Cilke. ― Vídeo e áudio. Não quero qualquer mal-entendido relativamente a esta conversa. ― Fez uma pequena pausa antes de continuar, dirigindo-se a Astorre. ― Quero que compreenda que nada mudou. Considero-o um monte de esterco e não permitirei que viva neste país. Não vou nessa treta dos dons. Não acredito na sua história a respeito de um informador. Penso que foi você quem engendrou tudo o que aconteceu e depois traiu o seu cúmplice para conseguir da minha parte um tratamento mais leniente. Desprezo esse tipo de espertezas.
Astorre estava espantado por Cilke ter chegado tão perto da verdade. Olhou para ele com renovado respeito. E no entanto sentia-se ofendido. O homem não sabia o que era gratidão, não tinha respeito por quem o salvara a ele e à família. Aquela contradição íntima fê-lo sorrir.
Aquele sorriso enfureceu Cilke
― Acha que é engraçado, uma das suas piadas da Máfia? Eu já trato de lhe tirar esse sorriso dos lábios em dois segundos. ― Voltou-se então para Nicole. ― Em primeiro lugar, o Bureau exige que nos revele as verdadeiras circunstâncias em que a informação chegou ao vosso conhecimento. Não a história da carochinha que o seu primo nos contou. Estou surpreendido consigo, doutora. E estou também a pensar acusá-la de cumplicidade.
― Pode tentar ― respondeu Nicole, gélida. ― Mas sugiro que fale primeiro com o seu diretor.
― Quem o informou do ataque à minha casa? ― perguntou Cilke. ― Queremos o verdadeiro informador.
Astorre encolheu os ombros.
― Já lhe disse tudo o que tinha a dizer. É pegar ou largar ― declarou.
― Nem uma coisa nem outra ― replicou Cilke. ― Vamos deixar isto bem claro. Você não passa de mais um monte de lixo. Mais um assassino. Sei que estourou o Di Benedetto e a Washington. Estamos a investigar o desaparecimento dos irmãos Sturzo em L. A. Matou três dos patifes do Portella e participou num rapto. Mais cedo ou mais tarde, acabamos por apanhá-lo. E nessa altura será só mais um pedaço de merda.
Pela primeira vez, Astorre pareceu perder a compostura, e a sua máscara de afabilidade escorregou um pouco. Viu Nicole a olhar para ele com uma espécie de pena assustada. Por isso permitiu que alguma da sua fúria escapasse.
― Não espero favores de si ― disse a Cilke. ― Você nem sequer sabe o que significa a palavra honra. Salvei a vida da sua mulher e da sua filha. Se não fosse eu, neste momento estariam debaixo de terra. Agora chama-me aqui para me insultar. Se a sua mulher e a sua filha estão vivas, devem-no a mim. Mostre algum respeito ao menos por isso.
Cilke fulminou-o com o olhar.
― Não lhe mostro coisa nenhuma ― disse, e sentiu uma raiva terrível por estar em dívida para com aquele homem.
Astorre levantou-se para sair da sala, mas o guarda empurrou-o para a cadeira.
― Vou transformar a sua vida num inferno ― prometeu Cilke.
Astorre encolheu os ombros.
― Faça o que quiser. Mas deixe-me dizer-lhe isto. Sei que colaborou na morte de Don Aprile. Só porque você e o Bureau queriam deitar a mão aos bancos. ― Ao ouvirem isto, os dois guardas avançaram para ele, mas Cilke deteve-os com um gesto. ― Sei que pode pôr fim aos ataques contra a minha família. Digo-lhe aqui e agora que passo a considerá-lo responsável por isso.
Do outro lado da sala, Bill Boxton olhou para Astorre e perguntou, arrastando as palavras: ― Está a ameaçar um agente federal?
― Claro que não ― interveio Nicole. ― Está apenas a pedir a ajuda dele.
Cilke pareceu agora mais frio.
― Tudo isto pelo seu amado Don. Obviamente, não leu o dossiê que eu entreguei à sua prima. O seu amado Don foi o homem que matou o seu pai quando você tinha apenas três anos.
Astorre pestanejou e olhou para Nicole. ― Foi essa a parte que tentaste apagar?
Nicole assentiu.
― Não acreditei que fosse verdade, e mesmo que fosse, não me pareceu que devesses saber. Só serviria para te magoar.
Astorre sentiu a sala começar a rodopiar, mas manteve a compostura.
― Não faz a menor ― disse.
― Agora que estamos entendidos, podemos ir? ― perguntou Nicole, dirigindo-se a Cilke.
Cilke era um homem poderosamente constituído, e quando saiu de trás da secretária deu uma leve palmada na cabeça de Astorre. O que o surpreendeu tanto a ele como a Astorre, pois nunca antes tinha feito uma coisa daquelas. Foi uma palmada destinada a mostrar o seu desprezo, que mascarava um ódio real. Compreendeu que nunca conseguiria perdoar a Astorre ter-lhe salvo a família. Quanto a Astorre, olhou-o fixamente nos olhos. Sabia exatamente o que Cilke sentia.
Voltaram os dois ao apartamento dela. Nicole tentou consolá-lo na sua humilhação, mas isso só serviu para enfurecê-lo ainda mais. Nicole preparou um almoço ligeiro e depois convenceu-o a deitar-se, para descansar um pouco. A certa altura, Astorre teve consciência da presença dela na cama, a abraçá-lo. Repeliu-a.
― Ouviste o que o Cilke disse a meu respeito. E queres envolver-te na minha vida?
― Não acredito nele nem nos seus relatórios ― afirmou Nicole. ― Astorre, acho que continuo apaixonada por ti.
― Não podemos voltar ao tempo em que éramos crianças ― disse-lhe ele, gentilmente. v Eu já não sou a mesma pessoa, e tu também não. Estás apenas a desejar que fôssemos outra vez miúdos.
Deixaram-se ficar abraçados. De súbito, Astorre perguntou, sonolentamente: ― Achas que é verdade o que eles disseram a respeito de o Don ter morto o meu pai?
No dia seguinte, levando consigo o sr. Pryor, Astorre foi a Chicago, para conferenciar com Benito Craxxi. Pô-los ao corrente do que se passara, e então perguntou: ― É verdade que Don Aprile matou o meu pai?
Craxxi ignorou a pergunta e inquiriu por sua vez: ― Tiveste alguma coisa a ver com o ataque à família desse Cilke?