― Estás então com problemas na América ― disse, já no pátio da villa, decorado com estátuas do Império Romano. ― Mas eu tenho boas notícias para ti. ― Mudou subitamente de assunto para perguntar: ― E a tua ferida. Tem-te dado problemas?
Astorre tocou no colar de ouro.
― Não ― respondeu. ― Mas deu-me cabo da voz. Agora sou grasnador em vez de tenor.
― Antes barítono que soprano ― disse Bianco, com uma gargalhada. ― De qualquer modo, a Itália tem tenores demais. Menos um não fará grande diferença. És um verdadeiro mafioso, e isso é que interessa.
Astorre sorriu e pensou naquele dia já tão distante em que fora nadar. Agora, em vez da raiva surda da traição, recordava apenas como se sentira ao acordar. Tocou novamente no amuleto que usava ao pescoço e perguntou:
― Que boas notícias são essas?
― Fiz as pazes com os Corleonesi e o Grazziella ― respondeu Bianco. ― Ele nunca esteve envolvido no assassínio de Don Aprile. Entrou para o cartel depois disso. Mas agora está descontente com o Portella e o Tulippa. Acha que são demasiado precipitados, e ainda por cima trapalhões. Desaprovou a tentativa contra o agente federal. Além disso, tem um grande respeito por ti. Lembra-se de ti do tempo em que trabalhavas para mim. Vê-te como um homem extraordinariamente dificil de matar. Agora quer esquecer todas as antigas vendettas e ajudar-te.
Astorre sentiu alívio. A sua missão seria muito mais fácil se não tivesse de preocupar-se com Grazziella.
― Amanhã vem encontrar-se connosco aqui na villa ― continuou Bianco.
― Confia assim tanto em si? ― estranhou Astorre.
― Não tem outro remédio ― explicou Bianco. ― Porque sem mim aqui em Palermo, não pode governar a Sicília. E agora somos mais civilizados do que quando cá estiveste da última vez.
Na tarde do dia seguinte, Michael Grazziella chegou à villa e Astorre notou que vestia ao estilo ultra-respeitável dos políticos romanos: terno escuro, camisa branca e gravata escura. Fazia-se acompanhar por dois guarda-costas, vestidos da mesma maneira. Grazziella era um homem de pequena estatura, delicado, com uma voz muito suave ― ninguém adivinharia que fôra responsável pelo assassínio de vários dos principais magistrados anti-Máfia. Apertou a mão a Astorre e disse:
― Vim aqui ajudá-lo como prova da minha profunda estima pelo nosso amigo Bianco. Por favor, esqueça o passado. Temos de começar de novo.
― Obrigado ― respondeu Astorre. ― É muita honra.
Grazziella fez um gesto aos guardas, que se afastaram em direção à praia.
― Então, Michael ― perguntou Bianco. ― Como é que podes ajudar?
― O Portella e o Tulippa são demasiado irrequietos para o meu gosto ― começou Grazziella, dirigindo-se a Astorre. ― E o Marriano Rubio é demasiado desonesto. Pelo contrário, julgo-o a si um homem muito esperto e qualificado. Além disso, o Nello é meu sobrinho, e soube que o poupou, o que não é pequena coisa. Aqui tem os meus motivos.
Astorre assentiu. Para lá de Grazziella, viu o verde-profundo do mar da Sicília refulgir ao sol siciliano. Foi invadido por uma súbita onda de nostalgia, e de pena, pois sabia que tinha de partir. Tudo aquilo lhe era familiar de uma maneira que a América nunca poderia ser. Tinha saudades das ruas de Palermo, do som de vozes italianas, de falar ele próprio uma língua que lhe era mais natural do que o inglês. Voltou a concentrar a sua atenção em Grazziella.
― Que pode então dizer-me?
― Os membros do cartel querem que eu vá encontrar-me com eles na América ― disse Grazziella. ― Posso informá-lo sobre o momento, o local e as medidas de segurança. Se optar por uma ação drástica, posso oferecer-lhe refúgio aqui na Sicília, e se tentarem extraditá-lo, tenho amigos em Roma que travarão o processo.
― Tem esse tipo de poder? ― espantou-se Astorre.
― Certamente ― respondeu Grazziella, com um leve encolher de ombros. ― Como poderíamos existir de outra maneira? Mas não seja demasiado precipitado.
Astorre sabia que ele estava a referir-se a Cilke. Sorriu. ― Nunca sou precipitado ― afirmou.
Grazziella sorriu delicadamente e declarou:
― Os seus inimigos são meus inimigos, e prometo o meu apoio à sua causa.
― Presumo que não estará nessa reunião ― disse Astorre.
Grazziella voltou a sorrir. ― No último instante, surgirá um impedimento. Não estarei presente.
― E quando será isso?
― Dentro de um mês.
Depois de Grazziella ter partido, Astorre perguntou a Bianco: ― A sério, diga-me, por que está ele a fazer isto?
Bianco olhou para ele com admiração.
― Como compreendes bem a Sicília ― disse. ― Todas as razões que te deu são válidas, mas há um motivo principal que não referiu. ― Hesitou um instante. ― O Tulippa e o Portella têm andado a enganá-lo na distribuição dos lucros da droga, de modo que mais tarde ou mais cedo teria inevitavelmente de declarar-lhes guerra por causa disso. Não podia tolerar semelhante coisa. Tem-te em alto apreço, e para ele seria ótimo se liquidasses os seus inimigos e te tornasses seu aliado. É um homem muito esperto, este Grazziella.
Nessa noite, Astorre passeou pela praia e pensou no que devia fazer. Finalmente, o desfecho da guerra aproximava-se.
O sr. Pryor não tinha problemas no que respeitava a gerir os bancos Aprile e defendê-los contra as autoridades. Mas quando os homens do FBI invadiram Nova Iorque na sequência da tentativa de assassínio contra Cilke, ficou um pouco preocupado com aquilo que poderiam descobrir. Especialmente depois da visita de Cilke.
Na sua juventude, o sr. Pryor fora um dos mais apreciados assassinos da Máfia de Palermo. Mas vira a tempo que ia por mau caminho e transferira-se para a atividade bancária, onde o seu encanto natural, a sua inteligência e as suas ligações criminosas lhe garantiram o êxito. Em resumo, tornara-se o banqueiro mundial da Máfia. Em muito pouco tempo, fizera-se especialista em provocar tempestades no mercado de divisas e em amontoar dinheiro sujo. Tinha, além disso, um talento especial para comprar negócios legítimos a bons preços. Acabara por emigrar para Inglaterra porque a lisura do sistema inglês protegia melhor a sua riqueza do os subornos em Itália.
No entanto, o seu comprido braço ainda chegava a Palermo e aos Estados Unidos. Continuava a ser o principal banqueiro da cosca de Bianco nos seus esforços para controlar a indústria da construção civil na Sicília. Era igualmente o elo de ligação entre os bancos Aprile e a Europa.
Agora, com toda aquela atividade policial, ocorrera-lhe um possível ponto perigoso: Rosie. Rosie podia ligar Astorre aos irmãos Sturzo. Além disso, sabia que Astorre tinha um fraquinho por ela e continuava a encontrar algum conforto nos seus encantos. O que o não fazia respeitá-lo menos; era uma fraqueza que os homens exibiam desde tempos imemoriais. E Rosie era uma rapariga tão mafiosa. Quem poderia resistir-lhe? No entanto, por muito que a admirasse, continuava a pensar que não era sensato tê-la por perto.
Por isso resolvera tratar ele próprio do assunto, como certa vez fizera em Londres. Sabia que não teria a aprovação de Astorre para o que tinha em mente ― conhecia o feitio de Astorre e não subestimava a sua periculosidade. Mas Astorre era sempre razoável. Saberia convencê-lo depois do fato consumado, e ele reconheceria a sensatez por detrás da Ação.