Os seus próprios homens observavam-no atentamente, à espera da ordem para atacar. Monza colocara três atiradores na galeria que dominava a nave, fora das vistas. Os outros encontravam-se em lados opostos do armazém.
Passaram-se longos minutos, enquanto Astorre mostrava as instalações aos seus convidados. Até que, finalmente, Portella disse:
― Vê-se bem que é na verdade aqui que está o seu coração. Por que é que não nos deixa gerir os bancos? Fazemos-lhe uma nova oferta e ainda lhe damos uma percentagem.
Astorre preparava-se para fazer sinal aos seus homens quando ouviu uma longa rajada e viu três deles caírem da galeria e precipitarem-se de uma altura de seis metros no chão de cimento. Olhou em redor, à procura de Monza, ao mesmo tempo que se escondia rapidamente atrás de uma enorme máquina de embalar.
Dali, viu uma mulher negra com uma pala verde a tapar-lhe um olho correr para eles e agarrar Portella pelo pescoço. Espetou-lhe na proeminente barriga o cano da espingarda automática que empunhava, sacou de um revólver e atirou a espingarda para o chão.
― OK. ― disse Aspinella Washington. ― Toda a gente larga as armas! ― Quando ninguém se mexeu, não hesitou um segundo. Ainda a agarrar Portella pelo pescoço, fê-lo dar meia volta e disparou-lhe duas balas no estômago. Quando ele se dobrou para a frente, bateu-lhe com a coronha do revólver na nuca e pontapeou-o na boca. Quase no mesmo movimento, agarrou Tulippa e ameaçou: ― Tu és o próximo, a menos que toda a gente faça o que eu mando. Isto é olho por olho, seu filho-da-puta.
Portella soube que, sem ajuda, só viveria mais alguns minutos. Já começava a perder a visão. Estava estendido no chão, a respirar pesadamente, com a florida camisa empapada em sangue. Sentia a língua entorpecida.
― Façam o que ela diz ― murmurou, debilmente. Os seus homens obedeceram.
Portella sempre ouvira dizer que apanhar um tiro no estômago era a forma mais dolorosa de morrer. Agora sabia porquê. Cada vez que inspirava, era como se lhe espetassem uma faca no coração. Perdeu o controle da bexiga, e a urina pôs uma mancha escura nas suas calças azuis. Tentou focar os olhos na atiradora, uma atlética mulher negra que não reconheceu. Tentou formar as palavras “Quem é você?”, mas não conseguiu reunir força suficiente para isso. O seu último pensamento foi curiosamente sentimentaclass="underline" quem iria dizer a Bruno que ele tinha morrido?
Astorre só precisou de uma fração de segundo para compreender o que se tinha passado. Nunca vira a detetive Aspinella Washington, exceto nos jornais e nos noticiários da TV. Mas soube que se ela o tinha encontrado, era porque já conseguira apanhar John Heskow. E Heskow estava com toda a certeza morto. Não sentiu pena do escorregadio intermediário. Heskow tinha o grande defeito de ser um homem capaz de dizer fosse o que fosse para permanecer vivo. Ainda bem que estava debaixo de terra, a fazer crescer as flores de que tanto parecia gostar.
Tulippa não fazia a mínima idéia de quem era aquela cabra negra que lhe encostava ao pescoço o cano de um revólver. Confiara as questões de segurança a Portella e dera folga aos seus leais guarda-costas. Um estúpido erro. A América era um país tão estranho, pensou. Nunca se sabia de onde ia surgir a violência.
Enquanto o cano do revólver se lhe cravava na carne cada vez com mais força, Tulippa fez a si mesmo a promessa de que, se escapasse daquilo com vida e conseguisse voltar à América do Sul, aceleraria o seu programa de produção de um arsenal nuclear. Faria pessoalmente tudo o que pudesse para estourar a maior parte possível da América, especialmente Washington D.C., uma capital de fanfarrões arrogantes que passavam a vida com o cu sentado em cadeirões estofados, e Nova Iorque, onde os loucos como aquela puta zarolha pareciam nascer por geração espontânea.
― Muito bem ― disse Aspinella, dirigindo-se a Tulippa. ― Ofereceu-nos meio milhão para tomar conta deste tipo. ― Apontou para Astorre. ― Teria muito gosto em aceitar o serviço, mas, depois do meu acidente, fui obrigada duplicar o preço. Só com um olho, tenho de concentrar-me a dobrar.
Kurt Cilke passara o dia inteiro a vigiar o armazém. Sentado no seu Chevrolet sem mais companhia do que um pacote de pastilhas elásticas e um exemplar da Newsweek, esperou que Astorre fizesse a sua jogada.
Fôra sozinho, não querendo envolver quaisquer outros agentes naquilo que acreditava poder ser o fim da sua carreira. Quando viu Tulippa e Portella entrarem no edificio, a bílis subiu-lhe à garganta. E apercebeu-se de como Astorre era um inimigo astuto. Se, como suspeitava, aqueles dois tentassem atacá-lo, ele teria o dever legal de protegê-lo. Astorre ficaria livre e ilibaria o seu nome sem quebrar o silêncio. E Cilke veria anos de trabalho muito duro voarem pela janela.
O inesperado aparecimento de Aspinella Washington empunhando uma espingarda automática fê-lo sentir algo muito diferente: frio medo. Soubera do papel que Aspinella desempenhara nos acontecimentos do aeroporto. Tudo aquilo lhe parecera extremamente suspeito. Os elementos não se ajustavam.
Verificou o tambor do revólver e teve a remota esperança de poder contar com ela para o ajudar. Antes de sair do carro, decidiu que era altura de informar o Bureau. Ligou para Boxton, servindo-se do telefone celular.
― Estou à porta do armazém do Astorre Viola ― disse-lhe. E nesse momento ouviu o som de uma rajada. ― Vou entrar, e se as coisas correrem mal, quero que digas ao diretor que agi por minha conta e risco. Estás a gravar esta chamada?
Boxton hesitou, sem saber se Cilke gostaria de saber que estava a ser gravado. Mas, desde a tentativa de assassínio montada contra ele, todos os seus telefonemas eram monitorizados.
― Sim ― respondeu, por fim.
― Ótimo ― disse Cilke. ― Para que conste, nem tu nem qualquer outra pessoa do FBI e responsável pelo que vou fazer a seguir. Vou entrar numa situação hostil que envolve três figuras conhecidas do crime organizado e uma renegada do Departamento de Polícia de Nova Iorque, pesadamente armada.
Boxton interrompeu-o. ― Kurt, espera por apoio.
― Não há tempo. E além disso, este sarilho é meu. Compete-me a mim resolvê-lo. ― Pensou em deixar uma mensagem para Georgette, mas decidiu que seria demasiado mórbido e piegas. Mais valia deixar que as suas ações falassem por ele. Desligou o telefone sem mais uma palavra. Quando saiu do carro, reparou que estava mal-estacionado.
A primeira coisa que viu quando entrou no armazém foi a arma de Washington cravada no pescoço de Tulippa. Todos as personagens daquele drama estavam silenciosas. Ninguém se movia.
― Sou um agente federal ― anunciou, mostrando o revólver. ― Deixem cair as vossas armas no chão.
Aspinella voltou-se para ele e atirou-lhe, num tom carregado de desprezo.
― Sei muito bem que você é. Esta captura e minha. Vá prender uns contabilistas, ou corretores, ou lá o raio que vocês, seus janotas de merda, passam o tempo a fazer. Este é um caso do Departamento de Polícia de Nova Iorque.
― Detetive ― respondeu Cilke, calmamente ― deixe cair a sua arma, já. Caso contrário, usarei a força, se necessário. Tenho razões para pensar que está envolvida numa associação criminosa.
Aspinella não tinha contado com aquilo. Pela expressão nos olhos de Cilke e pela firmeza da sua voz, soube que ele não cederia. Mas ela também não estava disposta a ceder, pelo menos enquanto tivesse uma arma na mão. Muito provavelmente, aquele tipo não disparava contra uma pessoa havia anos, pensou.
― Acha que eu estou envolvida numa conspiração criminosa? ― gritou. ― Pois eu acho que você é que está envolvido numa associação criminosa. Acho que há anos que recebe subornos deste monte de merda. ― E empurrou ainda mais o cano da arma contra o pescoço de Tulippa. ― Não e verdade, senhor?