Os olhos do árabe passeavam pelo quadro de Joan Miró, pelo lugar onde Fellini comia, pela moça que guardava os casacos, pelos clientes que entravam e os que saíam.
- Você não sabia?
- Mais vinho, por favor - foi a resposta de Maria, ainda entre lágrimas.
Rezava para que o garçom não se aproximasse e descobrisse o que estava acontecendo - e o garçom, que assistia a tudo a distância com o rabo do olho, rezava para que o homem com a garota pagasse logo a conta, porque o restaurante estava repleto e havia gente esperando.
Finalmente, depois do que parecia ser uma eternidade, ela falou:
- Você disse um drink por mil francos?
A própria Maria estranhou o tom de sua voz.
- Sim - respondeu o árabe, já arrependido de ter feito a proposta. - Mas eu não quero de maneira nenhuma...
- Pague a conta. Vamos tomar este drink no seu hotel.
De novo, parecia uma estranha para si mesma. Até então fora uma moça gentil, educada, alegre, e jamais teria usado este tom de voz com um estranho. Mas parecia que aquela moça havia morrido para sempre: diante dela estava uma outra existência, onde os drinks custavam mil francos, ou, em uma moeda mais universal, em torno de seiscentos dólares.
E tudo ocorreu exatamente conforme o esperado: foi para o hotel com o árabe, bebeu champanha, embriagou-se quase que completamente, abr iu as pernas, esperou que ele tivesse um orgasmo (não lhe ocorreu fingir que também quisesse um), lavou-se no banheiro de mármore, pegou o dinheiro, e deu-se ao luxo de pagar um táxi até em casa.
Atirou-se na cama e dormiu uma noite sem sonhos.
Do diário de Maria, no dia seguinte:
Lembro-me de tudo, menos do momento em que tomei a decisão. Curiosamente, não tenho nenhum sentimento de culpa. Antes costumava ver as meninas que iam para a cama por dinheiro como gente a quem a vida não tinha deixado nenhuma escolha - e agora vejo que não é assim. Eu podia dizer "sim"; ou "não", ninguém estava me forçando a aceitar nada.
Ando pelas ruas, olho as pessoas, será que elas escolheram suas próprias vidas? Ou será que elas também, como eu, foram "escolhidas" pelo dest ino? A dona de casa que sonhava em ser modelo, o executivo de banco que pensou em ser músico, o dentista que tinha um livro escondido e gostaria de dedicar-se à literatura, a menina que adoraria trabalhar na televisão, mas tudo que encontrou foi um emprego de caixa de supermercado.
Não tenho a menor pena de mam mesma. Continuo não sendo uma vítima, porque podia ter saído do restaurante com a minha dignidade intacta e a minha carteira vazia. Podia ter dado lições de moral àquele homem à minha frente, ou tentado fazê- lo ver que diante de seus olhos estava uma princesa, era melhor conquista- la que compra- la. Podia ter tomado um sem-número de atitudes, entretanto - como a maioria dos seres humanos deixei que o destino escolhesse que rumo tomar.
Não sou a única, embora o meu destino pareça mais ilegal e marginal que o dos outros. Mas, na busca da felicidade, estamos todos empatados: o executivo/ músico, o dentista/escritor, a caixa/atriz, a dona de casa/modelo, nenhum de nós é feliz.
Então é isso? Era fácil assim? Estava em uma cidade estranha, não conhecia ninguém, o que ontem era um suplício hoje lhe dava uma imensa sensação de liberdade, não precisava dar explicações a ninguém.
Resolveu que, pela primeira vez em muitos anos, ia dedicar o dia inteiro a pensar em si mesma. Até então vivera sempre preocupada com os outros: a mãe, os colegas de escola, o pai, os funcionários da agência de modelos, o professor de francês, o garçom, a bibliotecária, o que as pessoas na rua - que nunca tinha visto antes - estavam pensando. Na verdade, ninguém estava pensando em nada, muito menos nela, uma pobre estrangeira que, se desaparecesse amanhã, nem mesmo a polícia daria pela falta.
Bastava. Saiu cedo, tomou o café da manhã no lugar de sempre, caminhou um pouco em torno do lago, viu uma manifestação de exilados. Urra mulher, com um pequeno cachorro, comentou que eram curdos, e, mais uma vez, em vez de fingir que sabia a resposta para mostrar que era mais culta e inteligente do que pensavam, ela perguntou:
- De onde vêm os curdos?
A mulher, para sua surpresa, não soube responder. É assim o mundo: falam como se conhecessem tudo, e se você ousa perguntar, não sabem nada. Entrou em um cybercafé e descobriu na internet que as curdos vinham do Curdistão, um país inexistente, hoje dividido entre a Turquia e o Iraque. Voltou para o lugar onde estava, tentando encontrar a mulher com o cachorro, mas ela já havia partido, talvez porque o animal não tivera agüentado ficar meia hora vendo um bando de seres humanos com faixas, lenços, músicas, e gritos estranhos.
"Isso sou eu. Ou melhor, isso era eu: uma pessoa que fingia saber tudo, escondida em meu silêncio, até que aquele árabe me irritou tanto que tive coragem de dizer que só sabia a diferença entre refrigerantes. Ele ficou chocado? Mudou de id éia a meu respeito? Nada!
Deve ter achado fantástica a minha espontaneidade. Sempre saí perdendo quando quis parecer mais esperta do que sou: chega!"
Lembrou-se da agência de modelos. Será que sabiam o que queria o árabe - e neste caso mais uma vez Maria tinha bancado a ingênua - ou tinham realmente pensado que ele era capaz de arranjar um trabalho em seu país?
Fosse o que fosse, Maria se sentia menos só naquela manhã cinzenta de Genève, com a temperatura quase chegando próximo a zero, os curdos se manifestando, os bondes chegando no horário em cada parada, as lojas recolocando jóias nas vitrines, os bancos abrindo, os mendigos dormindo, os suíços indo para o trabalho. Estava menos só porque ao seu lado havia uma outra mulher, talvez invisível para os que passavam. Jamais tinha notado sua presença, mas ela estava ali.
Sorriu para a mulher invisível ao seu lado, que se parecia com a Virgem Maria, a mãe de Jesus. A mulher sorriu de volta, disse que tomasse cuidado, pois as coisas não eram tão simples como estava pensando. Maria não deu importância ao conselho, respondeu que era uma pessoa adulta, responsável por suas decisões, e não podia acreditar que havia uma conspiração cósmica contra ela. Aprendera que existe gente disposta a pagar mil francos suíços por uma noite, por meia hora entre suas pernas, e tudo que precisaria decidir, nos próximos dias, era se pegava os mil francos suíços que agora tinha em casa, comprava uma passagem de avião e voltava para a cidade onde nascera. Ou se ficava mais um pouco, o suficiente para comprar uma casa para os pais, belos vestidos e passagens para lugares que sonhara visitar um dia.
A mulher invisível ao seu lado tornou a insistir que as coisas não eram tão simples assim. Maria, embora contente com a companhia inesperada, pediu que não interrompesse seus pensamentos, a vida era mesmo mais complexa do que pensava.
Voltou a analisar, desta vez com mais cuidado, a possibilidade de retornar ao Brasil.
Suas amigas de colégio, que nunca tinham saído de lá, iriam logo comentar que fora mandada embora do emprego, que jamais tivera talento para ser uma estrela internacional.
Sua mãe ficaria triste porque nunca tinha recebido a mesada prometida - embora Maria, em suas cartas, afirmasse que o correio estava roubando o dinheiro. Seu pai a olharia o resto da vida com aquela expressão de "eu sabia", ela voltaria a trabalhar na loja de tecidos, se casaria com o dono, depois de ter viajado de avião, comido queijo suíço na Suíça, aprendido francês e pisado na neve.