Do diário de Maria, em um dia em que estava menstruada e não podia trabalhar: Se eu tivesse que contar hoje minha vida para alguém, poderia fazê-lo de tal maneira que iriam me achar uma mulher independente, corajosa e feliz. Nada disso: estou proibida de mencionar a única palavra que é muito mais importante que os onze minutos - amor.
Durante toda a minha vida, entendi o amor como uma espécie de escravidão consentida. É mentira: a liberdade só existe quando ele está presente. Quem se entrega totalmente, quem se sente livre, ama o máximo.
E quem ama o máximo sente-se livre.
Por causa disso, apesar de tudo que posso viver, fazer, descobrir, nada tem sentido.
Espero que este tempo passe rápido, para que eu possa voltar à busca de mim mesma -
refletida em um homem que me entenda, que não me faça sofrer.
Mas que bobagem é essa que estou dizendo? No amor, ninguém pode machucar ninguém; cada um de nós é responsável por aquilo que sente, e não podemos culpar o outro por isso.
Já me senti ferida quando perdi os homens pelos quais me apaixonei. Hoje estou convencida de que ninguém perde ninguém, porque ninguém possui ninguém.
Essa é a verdadeira experiência da liberdade: ter a coisa mais importante do mundo, sem possuí- la.
Mais três meses se passaram, o outono chegou, chegou também finalmente a data marcada no calendário: noventa dias para a viagem de volta. Tudo passara tão rápido e tão lentamente, pensou ela, descobrindo que o tempo corre em duas dimensões diferentes, dependendo do seu estado de espírito, mas em ambos os casos a sua aventura estava chegando ao final. Poderia continuar, é claro, mas não se esquecia do sorriso triste da mulher invisível que a acompanhara pelo passeio em volta do lago, dizendo que as coisas não eram tão simples assim. Por mais que estivesse tentada a continuar, por mais preparada que estivesse para os desafios que tinham surgido em seu caminho, todos estes meses convivendo apenas consigo mesma tinham lhe ensinado que existe um momento certo de interromper tudo. Dali a noventa dias voltaria para o interior do Brasil, compraria uma pequena fazenda (afinal, ganhara mais do que o esperado), algumas vacas (brasileiras, não suíças), convidaria seu pai e sua mãe para morarem com ela, contrataria dois empregados, e colocaria a empresa para funcionar.
Embora achasse que o amor é a verdadeira experiência da liberdade, e que ninguém pode possuir outra pessoa, ainda alimentava seus secretos desejos de vingança, e deles fazia parte seu retorno triunfal ao Brasil. Depois de montar sua fazenda, iria até a cidade, passaria em frente ao banco onde trabalhava o menino que havia saído com sua melhor amiga, e faria um grande depósito em dinheiro.
"Olá, como vai, você não me reconhece?", ele perguntaria. Ela fingiria um grande esforço de memória e terminaria dizendo que não, que passara um ano inteiro na EU-RO-PA (pronunciar bem devagar, para que todos os seus colegas escutem). Melhor dizendo, na SU-Í-ÇA (ia soar mais exótico e mais aventureiro do que França), onde existem os melhores bancos do mundo.
Quem era ele? Ele mencionaria os tempos de colégio. Ela diria, "Ah...! acho que me lembro", mas fazendo uma cara de quem não se lembrava. Pronto, a vingança estava consumada. Agora era trabalhar mais, e quando o negócio já estivesse andando como previa, ela poderia se dedicar àquilo que mais lhe importava na vida: descobrir seu verdadeiro amor, o homem que a esperara por todos aqueles anos, mas que ela ainda não tivera a oportunidade de conhecer.
Maria resolveu esquecer para sempre a idéia de escrever um livro com o título de Onze minutos. Precisava agora se concentrar na fazenda, nos planos para o futuro, ou terminaria adiando sua viagem, um risco fatal.
Naquela tarde, saiu para encontrar-se com sua melhor - e única - amiga, a bibliotecária. Pediu um livro sobre pecuária e administração de fazendas. A bibliotecária lhe confessou:
- Sabe, há alguns meses, quando você veio aqui em busca de títulos sobre sexo, eu cheguei a temer por seu destino. Afinal de contas, muitas moças bonitas se deixam levar pela ilusão do dinheiro fácil, e se esquecem de que um dia serão velhas, e já não terão oportunidade de encontrar o homem de suas vidas.
- Você está falando de prostituição?
- Uma palavra muito forte.
- Como já disse, trabalho em uma empresa de importação e exportação de carne.
Entretanto, se tivesse a oportunidade de me prostituir, as conseqüências seriam tão graves se parasse na hora certa? Afinal de contas, ser jovem também significa fazer coisas erradas.
- Todos os drogados dizem isso; basta saber a hora de parar. E ninguém pára.
- A senhora deve ter sido uma mulher muito bonita, nascida em um país que respeita seus habitantes. Isso lhe bastou para que se sentisse feliz?
- Tenho orgulho de como superei meus obstáculos.
Deveria continuar a história? Bem, aquela menina precisava aprender algo sobre a vida.
- Tive uma infância feliz, estudei em uma das melhores escolas de Berne, vim trabalhar em Genève, encontrei e casei- me com o homem que amava. Fiz tudo por ele, ele também fez tudo por mim, o tempo passou, e veio a aposentadoria. Quando ficou livre para usar o seu tempo com tudo que tinha vontade, seus olhos ficaram mais tristes - porque talvez, em toda a sua vida, jamais pensou em si mesmo. Nunca brigamos seriamente, não tivemos grandes emoções, ele jamais me traiu ou me desrespeitou em público. Vivemos uma vida normal, mas tão normal, que sem trabalho ele sentiu-se inútil, sem importância, e morreu um ano depois, de câncer.
Estava falando a verdade, mas podia influenciar de maneira negativa a menina à sua frente. - Seja como for, é melhor uma vida sem surpresas - concluiu. - Talvez meu marido tivesse morrido antes, se não fosse assim.
Maria saiu decidida a pesquisar sobre fazendas. Como tinha a tarde livre, resolveu passear um pouco, e terminou notando, na parte alta da cidade, uma pequena placa amarela com um sol e uma inscrição: "Caminho de Santiago." O que era aquilo? Como havia um bar do outro lado da rua, e como havia aprendido a perguntar tudo o que não sabia, resolveu entrar e informar-se.
- Não tenho idéia - disse a moça detrás do balcão.
Era um lugar elegante, e o café custava três vezes mais do que o normal. Mas já que tinha dinheiro, e já que estava ali, pediu um café e resolveu dedicar as próximas horas a aprender tudo sobre administração de fazendas. Abriu o livro com entusiasmo, mas não conseguiu concentrar-se na leitura - era aborrecidíssima. Seria muito mais interessante conversar com um dos seus fregueses a respeito do tema - eles sempre sabiam a melhor maneira de administrar o dinheiro. Pagou o café, levantou-se, agradeceu a moça que a serviu, deixou uma boa gorjeta (havia criado uma superstição a respeito, se desse muito receberia também muito), caminhou em direção à porta, e, sem dar-se conta da importância daquele momento, escutou a frase que mudaria para sempre os seus planos, seu futuro, sua fazenda, sua idéia de felicidade, sua alma de mulher, sua atitude de homem, seu lugar no mundo.
- Espere um pouco.
Olhou surpreendida para o lado. Aquilo ali era um bar respeitável, não era o Copacabana, onde os homens têm direito de dizer isso, embora as mulheres possam responder "vou sair, e você não irá me impedir".
Preparava-se para ignorar o comentário, mas sua curiosidade foi mais forte, e ela se virou em direção à voz. O que viu foi uma cena estranha: um homem de aproximadamente trinta anos (ou será que devia pensar "um rapaz de aproximadamente trinta anos?" Seu mundo tinha envelhecido muito rápido), de cabelos compridos, ajoelhado no chão, com vários pincéis espalhados ao seu lado - desenhando um senhor, sentado em uma cadeira, com um copo de anis ao seu lado. Não os havia notado quando entrara.