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Procurou desviar a atenção para o calor que estava fazendo, ou para o supermercado que não conseguira visitar no dia anterior. Escreveu uma longa carta para seu pai, cheia de detalhes a respeito do terreno que gostaria de comprar -isso deixaria sua família contente.

Não marcou a data da volta, mas deu a entender que seria breve. Dormiu, acordou, dormiu de novo, tornou a despertar. Descobriu que o livro sobre fazendas era muito bom para os suíços, mas não servia para os brasileiros - os mundos eram completamente distintos.

Durante a tarde, viu que o terremoto, o vulcão, a pressão diminuía. Ficou mais relaxada; este tipo de paixão súbita já tinha acontecido outras vezes, e terminava sempre no dia seguinte - que bom, o seu universo continuava o mesmo. Tinha uma família que a amava, um homem que a esperava, e que agora lhe escrevia com muita freqüência, contando que a loja de tecidos estava crescendo. Mesmo que resolvesse pegar o avião naquela noite, tinha dinheiro suficiente para pelo menos comprar um sítio. Ultrapassara a pior parte, a barreira da língua, a solidão, o primeiro dia no restaurante com o árabe, a maneira como convencera sua alma a não reclamar do que fazia com seu corpo. Sabia muito bem qual o seu sonho, e estava disposta a tudo por ele. E este sonho não incluía homens, por sinal. Pelo menos, não incluía homens que não falassem sua língua materna, e que não vivessem em sua cidade.

Quando o terremoto acalmou, Maria entende u que parte da culpa era sua. Porque não dissera, naquele momento: "Eu estou sozinha, sou tão miserável quanto você, ontem você viu minhàluz', e foi a primeira coisa bonita e sincera que um homem me disse desde que cheguei aqui."

No rádio tocava uma velha canção: "Meus amores morrem antes mesmo de nascer."

Sim, este era o seu caso, seu destino.

Trecho do diário de Maria, dois dias depois de tudo voltar ao normaclass="underline" A paixão faz a pessoa parar de comer, dormis trabalhar, estar em paz. Muita gente fica assustada porque, quando aparece, derruba todas as coisas velhas que encontra.

Ninguém quer desorganizar seu mundo. Por isso, muita gente consegue controlar esta ameaça, e são capazes de manter de pé uma casa ou uma estrutura que já está podre. São os engenheiros das coisas superadas.

Outras pessoas pensam exatamente o contrário: entregam- se sem pensar, esperando encontrar na paixão as soluções para todos os seus problemas. Colocam na outra pessoa toda a responsabilidade por sua felicidade, e toda culpa por sua possível infelicidade. Estão sempre eufóricas porque algo de maravilhoso aconteceu, ou deprimidas porque algo que não esperavam terminou destruindo tudo.

Afastar-se da paixão, ou entregar-se cegamente a ela - qual destas duas atitudes é a menos destruidora?

Não sei.

No terceiro dia, como ressuscitando dos mortos, Ralf Hart voltou - e quase chega um pouco tarde, porque Maria já estava conversando com outro freguês. Quando o viu, porém, ela disse educadamente ao outro que não queria dançar, estava esperando alguém.

Só então se deu conta de que esperara por ele todos estes dias. E neste momento, aceitou tudo que o destino colocara em seu caminho.

Não reclamou; ficou contente, podia dar-se a este luxo, porque um dia iria partir daquela cidade, sabia que este amor era impossível e, portanto, já que não esperava nada, teria tudo que ainda esperava daquela etapa de sua vida.

Ralf perguntou se ela queria um drink, e Maria pediu um coquetel de frutas. O dono do bar, fingindo que lavava copos, olhou para a brasileira sem entender nada: o que a teria feito mudar de idéia? Esperava que não ficasse ali apenas tomando a bebida, e ficou aliviado quando ele a tirou para dançar. Estavam cumprindo o ritual, não havia motivo para preocupações.

Maria sentia a mão em volta de sua cintura, o rosto colado, o som muito alto que -

graças a Deus - impedia qualquer conversa. Um coquetel de frutas não bastava para tomar coragem, e as poucas palavras que tinham trocado foram muito formais. Agora era uma questão de tempo: iriam para um hotel? Fariam amor? Não devia ser difícil, já que ele havia dito que não se interessava por sexo, agora era apenas uma questão de cumprir seu compromisso profissional. Isso ajudaria a matar qualquer vestígio de uma possível paixão -

não sabia por que havia se torturado tanto logo após o primeiro encontro.

Esta noite seria a Mãe Compreensiva. Ralf Hart era apenas um homem desesperado, como milhões de outros. Se desempenhasse bem o seu papel, se conseguisse seguir o roteiro que havia estabelecido para si mesma desde que começara a trabalhar no Copacabana, não teria com o que se preocupar. Era muito arriscado ter aquele homem por perto, agora que sentia seu cheiro - e gostava -, experimentava seu toque - e gostava -, descobrira-se esperando por ele - e não gostava.

Em quarenta e cinco minutos já tinham cumprido todas as regras, e o homem se dirigira ao dono da boate:

"Vou levá- la para o resto da noite. Pagarei como se fossem três clientes."

O dono deu de ombros, e pensou de novo que a moça brasileira ia terminar caindo na armadilha do amor. Maria, por seu lado, ficou surpresa: não sabia que Ralf Hart conhecia tão bem as regras.

- Vamos até minha casa.

Talvez essa fosse mesmo a melhor decisão, pensou ela. Embora fosse contra todas as recomendações de Milan, neste caso resolveu abrir uma exceção. Além de descobrir de uma vez por todas se era ou não casado, conheceria a maneira de viver dos pintores famosos, e um dia poderia escrever qualquer coisa para o jornal de sua pequena cidade - de modo que todos ficassem sabendo que, durante seu período na Europa, ela freqüentara círculos intelectuais e artísticos.

"Que desculpa absurda."

Meia hora depois chegaram a um pequeno vilarejo próximo de Genève, chamado Cologny; uma igreja, a padaria, a prefeitura, tudo em seu lugar. E era realmente uma casa de dois andares, não um apartamento! Primeira avaliação: devia ter mesmo dinheiro.

Segunda avaliação: se fosse casado, não ousaria fazer aquilo, porque sempre havia gente olhando.

Então, era rico e solteiro.

Entraram por um hall com uma escada que levava ao segundo andar, mas seguiram direto, até as duas salas na parte de trás, que davam para um jardim. Uma delas tinha uma mesa de jantar, e as paredes eram cobertas de quadros. A outra sala tinha alguns sofás, cadeiras, estantes cheias de livros, cinzeiros sujos, copos que tinham sido usados havia muito tempo e que ainda permaneciam ali.

- Posso preparar um café.

Maria fez um sinal negativo com a cabeça. Não, não pode preparar um café. Ainda não pode me tratar diferente. Estou desafiando meus próprios demônios, fazendo exatamente tudo ao contrário do que prometi a mim mesma. Mas vamos com calma; hoje farei o papel de prostituta, ou de amiga, ou de Mãe Compreensiva, embora na minha alma eu seja uma Filha que precisa de carinho. Finalmente, quando tudo estiver terminado, você pode me preparar um café.

- No fundo do jardim está meu estúdio, minha alma. Aqui, entre todos estes quadros e livros, está meu cérebro, o que penso.

Maria pensou em sua própria casa. Não tinha um jardim no fundo. Nem livros, apenas os emprestados da biblioteca, já que não havia necessidade de gastar dinheiro com o que podia conseguir de graça. Tampouco havia quadros, apenas um pôster do Circo Acrobático de Shanghai, a que ela sonhava assistir.

Ralf pegou uma garrafa de uísque e lhe ofereceu.

- Não, obrigada.

Ele serviu-se uma dose, e virou tudo - sem gelo, sem tempo. Começou a falar coisas inteligentes, e por mais que a conversa lhe interessasse, ela sabia que aquele homem estava com medo do que ia acontecer, agora que es tavam sozinhos. Maria recuperava o controle da situação.

Ralf serviu outra dose a si mesmo, e como se estivesse dizendo alguma coisa sem importância, comentou:

- Preciso de você.

Uma pausa. Um silêncio longo. Não ajude a quebrar este silêncio, vamos ver como ele continua.