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"Oxalá tivesse sido destruído como todos os outros brinquedos que ganhei e de que nem me lembro, porque esta paixão de destruir faz parte da maneira como a criança descobre o mundo. Mas este trem intacto me lembra sempre uma parte da minha infância que eu não vivi, porque era preciosa demais, ou trabalhosa demais para o meu pai. Ou talvez porque, cada vez que montava o trem, tivesse medo de demonstrar seu amor por mim."

Maria começou a olhar fixamente o fogo na lareira. Algo estava acontecendo - e não era o vinho, nem o ambiente acolhedor. Era a entrega de presentes.

Ralf também se virou para o fogo. Ficaram calados, escutando o crepitar das chamas.

Beberam vinho, como senão fosse importante dizer nada, falar nada, fazer nada. Apenas estar ali, um com o outro, olhando na mesma direção.

-Tenho muitos trens intactos na minha vida -disse Maria, depois de um tempo. - Um deles é o meu coração. Também só brincava com ele quando o mundo colocava os trilhos, e nem sempre era o momento certo.

- Mas você amou.

-Sim, eu amei. Eu amei muito. Eu amei tanto que, quando o meu amor me pediu um presente, eu tive medo e fugi.

- Não entendo.

- Não precisa. Estou lhe ensinando, porque descobri algo que não sabia. O presente. A entrega de alguma coisa que é sua. Dar antes de pedir algo que seja importante. Você tem meu tesouro: a caneta com que escrevi alguns de meus sonhos. Eu tenho seu tesouro: o vagão de trem, parte da infância que você não viveu.

"Eu agora carrego comigo parte do seu passado, e você guarda consigo um pouco do meu presente. Que bom."

Disse tudo isso sem pestanejar, sem estranhar seu comportamento, como se soubesse havia muito tempo que esta era a melhor e única maneira de agir. Levantou-se com suavidade, pegou seu casaco no cabide, e deu- lhe um beijo no rosto. Ralf Hart, em nenhum momento, fez menção alguma de levantar-se de onde estava, hipnotizado pelo fogo, possivelmente pensando em seu pai.

- Nunca entendi direito por que guardava esse vagão. Hoje ficou claro: para entregar-lhe em uma noite de lareira acesa. Agora esta casa fica mais leve.

Ele disse que, no dia seguinte, iria doar o resto dos trilhos, locomotivas, pastilhas que imitavam fumaça, a algum asilo.

- Talvez hoje este trem seja uma raridade que não se fabrica mais e valha muito dinheiro - advertiu Maria, para logo se arrepender. Não se tratava disso, mas de livrar-se de algo que custa ainda mais caro ao nosso coração.

Antes que tornasse a dizer coisas que não combinavam com o momento, tornou a dar-lhe um beijo no rosto e dirigiu-se até a porta. Ele ainda continuava olhando o fogo, e ela pediu, delicadamente, que viesse abri-Ia.

Ralf levantou-se e ela explicou que, embora estivesse contente de vê-lo olhando o fogo, os brasileiros têm uma estranha superstição: quando visitam alguém pela primeira vez, não podem abrir a porta na hora da saída, porque se fizerem isso, jamais retornarão àquela casa.

- E eu quero voltar.

- Embora não tenhamos tirado a roupa e eu não tenha entrado em você, nem sequer a tenha tocado, nós fizemos amor.

Ela riu. Ele ofereceu-se para levá-la em casa, mas Maria

recusou.

- Irei vê-Ia amanhã, no Copacabana.

- Não faça isso. Espere uma semana. Aprendi que esperar é a parte mais difícil, e quero também me acostumar com isso; saber que você está comigo, mesmo que não esteja ao meu lado.

Andou de novo pelo frio e pela escuridão da noite, como já tinha feito tantas vezes em Genève; normalmente estas caminhadas estavam associadas a tristeza, solidão, vontade de voltar para o Brasil, saudades da língua que não falava havia muito tempo, cálculos financeiros, horários.

Hoje, porém, caminhava para encontrar a si mesma, encontrar aquela mulhe r que, durante quarenta minutos esteve diante do fogo com um homem, e era cheia de luz, de sabedoria, de experiência, de encanto. Vira o rosto desta mulher fazia algum tempo, quando passeava pelo lago pensando se devia ou não se dedicar a uma vida que não era a sua -

naquela tarde, sorrira de um jeito muito triste. Vira seu rosto pela segunda vez em uma tela dobrada, e agora sentia de novo a sua presença. Só apanhou um táxi depois de muito tempo, ao ver que aquela presença mágica fora embora e a abandonara como sempre.

Melhor então não pensar no assunto para não estragá-lo, para não deixar que a ansiedade substituísse tudo de bom que acabara de viver. Se aquela outra Maria existia mesmo, ela voltaria no momento certo.

Trecho do diário de Maria escrito na noite em que ganhou o vagão de trem: O desejo profundo, o desejo mais real é aquele de aproximar-se de alguém. A partir daí, começam a ocorrer as reações, o homem e a mulher entram em Jogo, mas o que acontece antes - a atração que os juntou - é impossível de explicar. É o desejo intocado, em seu estado puro.

Quando o desejo ainda está neste estado puro, homem e mulher se apaixonam pela vida, vivem cada momento com reverência, e conscientemente, sempre esperando o momento certo de celebrar a próxima bênção.

Pessoas assim não têm pressa, não precipitam os acontecimentos com ações inconscientes. Elas sabem que o inevitável se manifestará, que o verdadeiro sempre encontra uma maneira de mostrar-se. Quando chega o momento, elas não hesitam, não perdem uma oportunidade, não deixam passar nenhum momento mágico porque respeitam a importância de cada segundo.

Nos dias que se seguiram, Maria descobriu-se de novo presa na armadilha que tanto evitara - mas não estava triste nem preocupada com isso. Pelo contrário: já que não tinha mais nada a perder, estava livre.

Sabia que, por mais romântica que fosse a situação, um dia Ralf Hart iria compreender que ela não passava de uma prostituta, enquanto ele era um respeitado artista.

Que ela morava em um país distante, sempre em crises, enquanto ele vivia no paraíso, com a vida organizada e protegida desde o nascimento. Ele fora educado freqüentando os melhores colégios e museus do mundo, enquanto ela mal terminara o curso secundário.

Enfim, sonhos como esses não duram muito, e Maria já vivera o bastante para entender que a realidade não combinava com seus sonhos. Essa era agora sua grande alegria: dizer à realidade que não precisava dela, não dependia das coisas que aconteciam para ser feliz.

"Como sou romântica, meu Deus."

Durante a semana tentou descobrir algo que pudesse deixar Ralf Hart feliz; ele lhe havia devolvido uma dignidade e uma "luz" que ela julgava perdidas para sempre. Mas a única forma de retribuí-lo era através do que ele julgava ser a especialidade de Maria: sexo.

Como as coisas não variavam muito na rotina do Copacabana, ela resolveu procurar outras fontes.

Foi assistir a alguns filmes pornográficos, e de novo não encontrou nada interessante -

exceto, talvez, por alguma variação quanto ao número de parceiros. Como os filmes não ajudavam muito, pela primeira vez desde que chegara em Genève decidiu comprar livros, embora ainda achasse que era muito mais prático não precisar ocupar o espaço de sua casa com algo que, uma vez lido, não tinha mais uso. Foi até uma livraria que vira enquanto andava com Ralf pelo Caminho de Santiago, e procurou saber se tinham alguma coisa sobre o tema.

- Muita, muita coisa - respondeu a moça encarregada de vendas. - Na verdade, as pessoas parecem se preocupar apenas com isso. Além de uma seção especial, também em todos os romances que você está vendo a sua volta existe pelo menos uma cena de sexo.

Mesmo que esteja escondido em lindas histórias de amor, ou em tratados sérios sobre o comportamento do ser humano, o fato é que as pessoas só pe nsam nisso.

Maria, com toda a sua experiência, sabia que a moça estava enganada: as pessoas queriam pensar assim, porque achavam que o mundo inteiro só se preocupava com este tema. Faziam regimes, usavam perucas, ficavam horas no cabeleireiro ou em academias de ginástica, vestiam roupas insinuantes, tentavam provocar a centelha desejada - e daí?

Quando chegava a hora de ir para a cama, onze minutos e pronto. Nenhuma criatividade, nada que levasse ao paraíso; em pouco tempo, a centelha já não tinha mais força para manter o fogo aceso.