- Não sei o que você quer. Mas entendo do que faço.
O ritual não foi cumprido; ele pagou a conta, pegou-a pelo braço, e lhe estendeu mil francos. Por um momento, no táxi, ela lembrou-se do árabe com quem tinha ido jantar no restaurante cheio de pinturas famosas; era a primeira vez que voltava a receber a mesma quantia, e, em vez de ficar contente, isso a deixou nervosa.
O táxi parou em um dos hotéis mais caros da cidade. O homem disse boa-noite ao porteiro, demonstrando uma imensa familiaridade com o local. Subiram direto ao seu quarto, uma suíte com vista para o rio. Ele abriu uma garrafa de vinho - possivelmente muito raro - e lhe ofereceu uma taça.
Maria olhava-o enquanto bebia; o que um homem como ele, rico, bonito, desejava de uma prostituta? Como ele quase não falava, ela também permaneceu a maior parte do tempo em silêncio, procurando descobrir o que podia deixar um cliente especial satisfeito.
Entendeu que não devia tomar a iniciativa, mas uma vez que o processo começasse, pretendia acompanhá- lo com a velocidade que fosse necessária; afinal de contas, não era toda noite que ganhava mil francos.
- Temos tempo - disse Terence. - Todo o tempo que quisermos. Pode dormir aqui, se assim desejar.
A insegurança voltou. O homem não parecia intimidado, e falava com uma voz calma, diferente de todos os outros. Sabia o que desejava; colocou uma música perfeita, na altura perfeita, no quarto perfeito, com a janela perfeita, que dava para o lago de uma cidade perfeita. Seu terno era bem cortado, a mala estava em um canto, pequena, como se não precisasse de muita coisa para viajar - ou como se tivesse vindo a Genève apenas por aquela noite.
- Vou dormir em casa - respondeu Maria.
O homem à sua frente mudou por completo. Seus olhos de cavalheiro ganharam um brilho frio, glacial.
- Sente-se ali - disse, apontando para uma cadeira ao lado da escrivaninha.
Era uma ordem! Uma verdadeira ordem. Maria obedeceu e, estranhamente, aquilo a excitou.
- Sente-se direito. Estique as costas, como uma mulher de classe. Se não fizer isso, vou castigá - la.
Castigar! Cliente especial! Em um minuto ela entendeu tudo, tirou os mil francos da bolsa e colocou-os na escrivaninha.
- Eu sei o que você quer - disse, olhando para o fundo daqueles gelados olhos azuis. -
E não estou disposta.
O homem pareceu voltar ao normal, e viu que ela falava a verdade.
- Tome seu vinho - disse. - Não vou forçá- la a nada. Pode ficar mais um pouco, ou pode sair se quiser.
Aquilo a deixou mais tranqüila.
- Tenho um emprego. Tenho um patrão que me protege e acredita em mim. Por favor, não comente nada com ele.
Maria disse isso sem nenhum tom de autopiedade, sem implorar nada - era simplesmente a realidade de sua vida.
Terence também voltara a ser o mesmo homem - nem doce, nem duro, apenas alguém que, ao contrário dos outros clientes, dava a impressão de saber o que desejava. Agora parecia sair de um transe, de uma peça de teatro que ainda não tinha começado.
Valia a pena ir embora assim, sem jamais descobrir o que significa um "cliente especial"?
- O que você queria, exatamente?
- Você sabe. Dor. Sofrimento. E muito prazer.
"Dor e sofrimento não combinam com muito prazer", pensou Maria. Embora quisesse desesperadamente acreditar que sim, e desta maneira transformar em positiva uma grande parte das experiências negativas de sua vida.
Ele pegou-a pelas mãos e levou-a até a janela: do outro lado do lago podiam ver a torre de uma catedral - Maria lembrava-se que passara por ali enquanto percorria com Ralf Hart o Caminho de Santiago.
- Você está vendo este rio, este lago, estas casas, aquela igreja? Há quinhentos anos, era tudo mais ou menos igual.
"Só que a cidade estava completamente vazia; uma doença desconhecida havia se espalhado por toda a Europa, e ninguém sabia por que morria tanta gente. Começaram a chamar a doença de peste negra, uma punição que Deus havia enviado ao mundo por causa dos pecados do homem.
"Então, um grupo de pessoas resolveu sacrificar-se pela humanidade. Ofereceram aquilo que mais temiam: a dor física. Passaram a caminhar dia e noite por estas pontes, estas ruas, açoitando o próprio corpo com chicotes ou correntes. Sofriam em nome de Deus, e louvavam a Deus com sua dor. Em pouc o tempo, descobriram que eram mais felizes fazendo isso do que cozinhando o pão, trabalhando na lavoura, alimentando os animais. A dor já não era mais o sofrimento, mas o prazer de resgatar a humanidade dos seus pecados.
A dor se transformara em alegria, no sentido da vida, no prazer."
Seus olhos voltaram a ter o mesmo brilho frio que vira alguns minutos antes. Pegou o dinheiro que ela havia deixado em cima da escrivaninha, retirou cento e cinqüenta francos e colocou-os em sua bolsa.
- Não se preocupe com o seu patrão. Aqui está a comissão dele, e prometo que não direi nada. Pode ir embora.
Ela agarrou todo o dinheiro.
- Não!
- Sabe por que aceito isso? Porque não há maior prazer do que iniciar alguém em um mundo desconhecido. Tirar a virgindade, não do corpo, mas da alma, está entendendo?
Estava entendendo.
- Hoje você poderá fazer perguntas. Mas da próxima vez, quando a cortina do nosso teatro se abrir, a peça começa e não pode parar. Se parar, é porque nossas almas não se combinaram. Lembre-se: é uma peça de teatro. Você tem que ser aquele per de ser. Aos poucos, você vai
descobrir que tal personagem é você mesma, mas até conseguir
Não existe dor, existe algo que se transforma em delícia,
em mistério. Faz parte da peça pedir: "Não me trate assim, está ferindo muito." Faz parte pedir: "Pare, eu não agüento mais!" E
por isso, para evitar o perigo... abaixe a cabeça e não me olhe!
Maria, ajoelhada, abaixou a cabeça e fitava o chão.
- Para evitar que esta relação cause danos físicos sérios, teremos dois códigos. Se um de nós disser "amarelo", isso significa que a violência deve ser reduzida um pouco. Se disser "verme
Os papéis se alternam. Não existe um sem o outro, e nin
guem saberá humilhar se não for também humilhado.
Eram palavras terríveis, vindas de um mundo que não conhecia, cheio de sombra, de lama, de podridão. Mesmo assim, ela sentia vontade de ir adiante - seu corpo estava tremendo, de
A mão de Terence tocou em sua cabeça com uma ternura inesperada.
- Fim.
Pediu que se levantasse. Sem um carinho especia l, mas sem a agressividade seca que demonstrara. Maria vestiu o casaco, ainda tremendo. Terence notou o seu estado.
- Fume um cigarro antes de ir.
- Não aconteceu nada.
- Não precisa. Começará a acontecer em sua alma, e da próxima vez que nos encontrarmos, estará pronta.
- Essa noite valeu mil francos?
Ele não respondeu. Acendeu também um cigarro, e terminaram o vinho, escutaram a música perfeita, saborearam juntos o silêncio. Até que chegou o momento de dizer alguma coisa, e Maria se surpreendeu com suas próprias palavras.
- Não entendo por que tenho vontade de pisar nesta lama.
- Mil francos.
- Não é isso.
Terence parecia contente com a resposta.
-Eu também já me perguntei a mesma coisa. O Marquês de Sade dizia que as mais importantes experiências do homem são aquelas que o levam ao extremo. Só assim aprendemos, porque isso requer toda a nossa coragem.
"Quando um patrão humilha um empregado, ou um homem humilha sua mulher, ele está apenas sendo covarde, ou vingando-se da vida, são pessoas que jamais ousaram olhar no fundo de suas almas, jamais procuraram saber de onde vem o desejo de soltar a fera selvagem, entender que o sexo, a dor, o amor são experiências limite do homem.
"E só quem conhece essas fronteiras conhece a vida; o resto é apenas passar o tempo, repetir uma mesma tarefa, envelhecer e morrer sem ter realmente sabido o que se estava fazendo aqui."
De novo a rua, de novo o frio, de novo a vontade de andar. O homem estava errado, não era preciso conhecer seus demônios para encontrar Deus. Cruzou com um grupo de estudantes que saía de um bar; estavam alegres, tinham bebido um pouco, eram bonitos, cheios de saúde, em breve terminariam a universidade e começariam aquilo que chamam de