"a verdadeira vida". Trabalho, casamento, filhos, televisão, amargura, velhice, sensação de muita coisa perdida, frustrações, doença, invalidez, dependência dos outros, solidão, morte.
O que estava acontecendo? Maria também procurava tranqüilidade para viver sua
"verdadeira vida"; o tempo passado na Suíça, fazendo algo que jamais imaginara fazer em sua vida, era apenas um período difícil, que todas as pessoas enfrentam cedo ou tarde.
Neste período difícil, freqüentava o Copacabana, saía com os homens por dinheiro, vivia a Menina Ingênua, a Mulher Fatal e a Mãe Compreensiva, dependendo do cliente. Era apenas um trabalho, ao qual se dedicava com o máximo de profissionalismo - por causa das gorjetas - e o mínimo de interesse com medo de acostumar-se com ele. Passara nove meses controlando o mundo ao seu redor, e pouco tempo antes de voltar para sua terra, estava se descobrindo capaz de amar sem exigir nada em troca, e sofrer sem motivo. Como se a vida tivesse escolhido este meio sórdido, estranho, para ensinar- lhe algo sobre seus próprios mistérios, sua luz e suas trevas.
Do diário de Maria na noite em que encontrou Terence pela primeira vez: Ele citou Sade, de quem eu nunca tinha escutado uma só palavra, apenas os comentários tradicionais sobre sadismo: "só nos conhecemos quando encontramos nossos próprios limites", o que está certo. Mas também está errado, porque não é importante conhecer tudo a respeito de nós mesmos; o ser humano não foi feito só para buscar a sabedoria, mas também para arar aterra, esperara chuva, plantar o trigo, colher o grão, fazer o pão.
Sou duas mulheres: uma deseja ter toda a alegria, a paixão, as aventuras que a vida pode dar. A outra quer ser escrava de uma rotina, da vida familiar, das coisas que podem ser planejadas e cumpridas. Sou a dona de casa e a prostituta, ambas vivendo no mesmo corpo, e uma lutando contra a outra.
O encontro de uma mulher consigo mesma é uma brincadeira com sérios riscos. Uma dança divina. Quando nos encontramos, somos duas energias divinas, dois universos que se chocam. Se o encontro não tem a reverência necessária, um universo destrói o outro.
Estava de novo na sala de estar da casa de Ralf Hart, o fogo na lareira, o vinho, os dois sentados no chão, e tudo o que experimentara no dia anterior com aquele executivo inglês não passava de um sonho ou um pesadelo - dependendo de seu estado de espírito.
Agora voltava a buscar sua razão de viver - melhor dizendo, a entrega mais louca possível, aquela em que a pessoa oferece seu coração e nada pede em troca.
Crescera muito enquanto esperava este momento. Descobrira, finalmente, que o amo r real nada tinha a ver com o que imaginava, ou seja, uma cadeia de acontecimentos provocados pela energia amorosa - namoro, compromisso, casamento, filhos, espera, cozinha, parque de diversões aos domingos, mais espera, velhice juntos, a espera acabou e em seu lugar veio a aposentadoria do marido, as doenças, a sensação de que já é muito tarde para viver juntos o que sonhavam.
Olhou para o homem a quem decidira se entregar, e a quem decidira jamais contar o que sentia, porque o que sentia agora estava longe de qualquer forma, inclusive a física. Ele parecia mais à vontade, como se estivesse começando um período interessante de sua existência. Estava sorrindo, contava histórias de sua recente viagem a Munique, para encontrar-se com um importante diretor de museu.
- Perguntou se a tela sobre as faces de Genève estava pronta. Eu disse que tinha encontrado uma das principais pessoas que gostaria de pintar. Uma mulher cheia de luz.
Mas não quero falar de mim, quero abraçá- la. Eu a desejo.
Desejo. Desejo? Desejo! Isso, esse era o ponto de partida para aquela noite, porque era algo que ela conhecia muito bem!
Por exemplo: desperta-se o desejo não entregando logo o seu objeto.
- Então: me deseje. Estamos fazendo isso, neste momento. Você está a menos de um metro de mim, foi até uma boate, pagou por meus serviços, sabe que tem o direito de tocar-me. Mas não ousa. Olhe- me. Olhe- me, e pense que talvez eu não queira que você me olhe.
Imagine o que está escondido debaixo de minha roupa.
Sempre usava vestidos pretos para trabalhar, e não entendia por que as outras meninas do Copacabana tentavam ser provocantes com seus decotes e cores agressivas. Para ela, excitar um homem era vestir-se como qualquer mulher que ele pudesse encontrar no escritório, no trem, ou na casa de uma amiga da mulher.
Ralf olhou-a, Maria sentiu que ele a despia, e gostou de ser desejada daquela maneira
- sem contato, como em um restaurante ou na fila do cinema.
- Estamos em uma estação - continuou Maria. - Estou esperando o trem junto com você, você não me conhece. Mas os meus olhos cruzam com os seus, por acaso, e não se desviam. Você não sabe o que estou tentando dizer, porque, embora seja um homem inteligente, capaz de ver a "luz" das pessoas, não é sensível o bastante para ver o que esta luz está iluminando.
Tinha aprendido o "teatro". Quis esquecer rápido o rosto do executivo inglês, mas ele estava ali, guiando sua imaginação.
- Meus olhos estão fixos nos seus, e posso estar perguntando a mim mesma: "Será que o conheço de algum lugar?" Ou posso estar distraída. Ou posso estar com medo de ser antipática, talvez você me conheça, vou dar-lhe o benefício da dúvida por alguns segundos, até concluir que é um fato, ou um malentendido.
"Mas também posso estar querendo a coisa mais simples do mundo: encontrar um homem. Posso estar tentando fugir de um amor que sofri. Posso estar procurando vingar-me de uma traição que acabou de acontecer, e resolvi ir até a estação de trem em busca de um desconhecido. Posso desejar ser sua prostituta só por uma noite, só para fazer algo diferente em minha vida aborrecida. Posso, inclusive, ser uma prostituta de verdade, que está ali para conseguir trabalho."
Um rápido silêncio; Maria havia se distraído de repente. Voltara para o hotel, a humilhação - "amarelo", "vermelho", dor e muito prazer. Aquilo havia mexido com sua alma, de uma maneira que não estava gostando.
Ralf notou, e procurou puxá-la de novo para a estação de trem:
- Neste encontro, você também me deseja?
- Não sei. Não nos falamos, você não sabe.
Outros segundos de distração. De qualquer maneira, a idéia do "teatro" ajudava muito; fazia surgir o verdadeiro personagem, afastava as muitas pessoas falsas que habitam em nós mesmos.
- Mas o fato é que eu não desvio meus olhos, e você não sabe o que fazer. Deve aproximar-se? Será rejeitado? Chamarei um guarda? Ou o convidarei para tomar café?
- Estou voltando de Munique - disse Ralf Hart, e seu tom de voz era diferente, como se estivessem realmente se encontrando pela primeira vez. - Estou pensando em uma coleção de quadros sobre as personalidades do sexo. As muitas máscaras que as pessoas usam para jamais viverem o verdadeiro encontro.
Ele conhecia o "teatro". Milan dissera que era também um cliente especial. O alarme tocou, mas ela precisava de tempo para pensar.
- O diretor do museu me disse: "Em que você pretende basear o seu trabalho?" Eu respondi: "Em mulheres que se sentem livres para fazer amor por dinheiro." Ele comentou:
"Não dá, chamamos estas mulheres de prostitutas." Eu respondi: "Bem, são prostitutas, vou estudar a história delas e farei algo mais intelectual, mais a gosto das famílias que irão freqüentar o seu museu. Tudo é uma questão de cultura, sabia? De apresentar de uma maneira agradável aquilo que custa a ser digerido." O diretor insistiu: "Mas o sexo não é mais tabu. É uma coisa tão explorada, que fica difícil fazer um trabalho com este tema." Eu respondi: "E você sabe de onde vem o desejo sexual?" "Do instinto", disse o diretor. "Sim, do instinto", afirmei, "mas isso todo mundo sabe. Como fazer uma bela exposição, se estamos apenas falando de ciência? Eu quero falar de como o homem explica essa atração.