Como um filósofo, por exemplo, contaria isso." O diretor pediu que eu desse um exemplo.
Eu disse que, quando tomasse o trem de volta para casa e alguma mulher me olhasse, eu iria falar com ela; diria que, por ser uma estranha, poderíamos ter a liberdade de fazer tudo que tínhamos sonhado, viver todas as nossas fantasias, e depois ir para nossas casas, nossas mulheres e nossos maridos, sem que jamais nos cruzássemos novamente. E então, nesta estação de trem, eu a vejo."
- Sua história é tão interessante, que está matando o desejo.
Ralf Hart riu, e concordou. O vinho tinha acabado, ele foi até a cozinha pegar mais uma garrafa, e ela ficou olhando o fogo, já sabendo qual seria o próximo passo, mas ao mesmo tempo saboreando o ambiente acolhedor, esquecendo o executivo inglês, voltando a entregar-se.
Ralf serviu os dois copos.
- Apenas como curiosidade, de que maneira você acabaria esta história com o diretor?
- Citaria Platão, já que estaria diante de um intelectual. Segundo ele, no início da criação, os homens e mulheres não eram como são hoje; havia apenas um ser, que era baixo, com um corpo e um pescoço, mas sua cabeça tinha duas faces, cada uma olhando para uma direção. Era como se duas criaturas estivessem grudadas pelas costas, com dois sexos opostos, quatro pernas, quatro braços.
"Os deuses gregos, porém, eram ciumentos, e viram que uma criatura que tinha quatro braços trabalhava mais, duas faces opostas esta vam sempre vigilantes e não podia ser atacada por traição, quatro pernas não exigiam tanto esforço para ficar de pé ou andar por longos períodos. E, o que era mais perigoso: tal criatura tinha dois sexos diferentes, não precisava de ninguém mais para continuar se reproduzindo na terra.
"Então disse Zeus, o supremo senhor do Olimpo: `Tenho um plano para fazer com que estes mortais percam sua força.'
"E, com um raio, cortou a criatura em dois, criando 0 homem e a mulher. Isso aumentou muito a população do mundo, e ao mesmo tempo desorientou e enfraqueceu os que nele habitavam - porque agora tinham que buscar de novo sua parte perdida, abraçá-la de novo, e nesse abraço recuperar a força antiga, a capacidade de evitar a traição, a resistência para andar longos períodos e agüentar o trabalho cansativo. O abraço em que os dois corpos se confundem de novo em um, nós o chamamos de sexo."
- Essa história é verdade?
- Segundo Platão, o filósofo grego.
Maria olhava-o fascinada, e a experiência da noite anterior tinha desaparecido por completo. Ela via o homem à sua frente cheio da mesma "luz" que ele enxergara nela, contando aquela estranha história com entusiasmo, os olhos brilhando não mais de desejo, mas de alegria.
- Posso lhe pedir um favor?
Ralf respondeu que podia pedir qualquer coisa.
- Pode descobrir por que, depois que os deuses separaram a criatura com quatro pernas, algumas delas resolveram que o abraço podia ser apenas uma coisa, um negócio como outro qualquer, que, em vez de acrescentar, retira a energia das pessoas?
- Você está falando de prostituição?
- Isso. Pode descobrir quando o sexo deixou de ser sagrado?
- Farei isso se você quiser - respondeu Ralf. - Mas nunca pensei nisso, e creio que ninguém mais pensou; talvez não haja material a esse respeito.
Maria não agüentou a pressão:
- já lhe ocorreu pensar que as mulheres, principalmente as prostitutas, são capazes de amar? - Sim, me ocorreu. Me ocorreu no primeiro dia, quando estávamos na mesa do café, quando vi sua luz. Então, quando pensei em convidá-la para um café, escolhi acreditarem tudo, inclusive na possibilidade de que você me devolvesse ao mundo, de onde parti faz muito tempo.
Agora não havia mais retorno. Maria, a mestra, precisava vir imediatamente em seu socorro, ou ela iria beijá- lo, abraçá-lo, pedir que não a deixasse.
- Vamos voltar para a estação de trem - disse. - Melhor dizendo, vamos voltar para esta sala, para o dia em que viemos aqui pela primeira vez, e você reconheceu que eu existia, e me deu um presente. Foi a primeira tentativa de entrar na minha alma, e você não sabia se era bem- vindo. Mas, como diz a sua história, os seres humanos foram divididos e agora buscam de novo este abraço que os una. Esse é o nosso instinto. Mas também a nossa razão para agüentar todas as coisas difíceis que acontecem durante esta busca.
"Eu quero que você me olhe, e quero, ao mesmo tempo, que evite fazer com que eu note. O primeiro desejo é importante porque ele é escondido, proibido, não consentido.
Você não sabe se está diante da sua metade perdida, ela tampouco sabe, mas algo os atrai -
e é preciso acreditar que seja verdade."
De onde estou tirando tudo isso? Estou tirando tudo isso do fundo do meu coração, porque gostaria que sempre tivesse sido assim. Estou tirando estes sonhos do meu próprio sonho de mulher.
Ela abaixou um pouco a alça do seu vestido, de modo que uma parte, apenas uma ínfima parte do bico do seu seio ficasse descoberto.
- O desejo não é o que você vê, mas aquilo que você imagina.
Ralf Hart olhava uma mulher de cabelos negros, e roupa igual aos cabelos, sentada no chão de sua sala de visitas, cheia de desejos absurdos, como ter uma lareira acesa em pleno verão. Sim, queria imaginar o que aquela roupa escondia, podia ver o tamanho de seus seios, sabia que o sutiã que ela usava era desnecessário, embora talvez fosse uma obrigação do ofício. Seus seios não eram grandes, não eram pequenos, eram jovens. Seu olhar não demonstrava nada; o que ela estava fazendo ali? Por que ele estava alimentando esta relação perigosa, absurda, se não tinha nenhum problema em arranjar uma mulher? Era rico, jovem, famoso, de boa aparência. Adorava seu trabalho, tinha amado as mulheres com que se casara, tinha sido amado. Enfim, era uma pessoa que, por todos os padrões, deveria gritar bem alto: "Eu sou feliz."
Mas não era. Enquanto a maioria dos seres humanos se matava por um pedaço de pão, um teto onde morar, um emprego que lhe permitisse viver com dignidade, Ralf Hart tinha tudo isso, o que o tornava mais miserável. Se fizesse um balanço recente de sua vida, talvez tivesse vivido dois, três dias em que tenha acordado, olhado o sol - ou a chuva - se sentido alegre por ser de manhã, apenas alegre, sem desejar nada, sem planejar nada, sem pedir nada em troca. Afora esses poucos dias, o resto de sua existência tinha sido gasto em sonhos, frustrações e realizações, desejo de superar a si mesmo, viagens além dos seus limites; não sabia exatamente a quem, ou o quê, o certo é que passara a sua vida tentando provar algo.
Olhava a bela mulher à sua frente, discretamente vestida de negro, alguém que encontrara por acaso, embora já a tivesse visto antes em uma boate, e reparado que não combinava com o lugar. Ela pedia que a desejasse, e ele a desejava muito, muito mais do que podia imaginar - mas não eram os seus seios, ou o seu corpo; era a sua companhia.
Queria abraçá- la, ficarem silêncio olhando o fogo, bebendo vinho, fumando um ou outro cigarro, isso era o suficiente. A vida era feita de coisas simples, estava cansado de todos estes anos buscando algo que não sabia
o que era.
Entretanto, se fizesse isso, se a tocasse, tudo estaria perdido. Porque, apesar de sua
"luz", não estava certo se ela entendia como era bom estar ao seu lado. Estava pagando?
Sim, e continuaria pagando o tempo que fosse necessário, até poder sentarse com ela à beira do lago, falar de amor - e escutar a mesma coisa de volta. Melhor não arriscar, não precipitar as coisas, não dizer nada.
Ralf Hart parou de se torturar e voltou a concentrar-se no jogo que acabavam de criar juntos. A mulher à sua frente estava certa: não bastava o vinho, o fogo, o cigarro, a companhia; era preciso outro tipo de embriaguez, outro tipo de chama.
A mulher estava com um vestido de alças, tinha deixado um seio à mostra, ele podia ver sua carne, mais para morena que branca. Desejou-a. Desejou-a muito.