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- O que você sabe de sofrimento, humilhação, e muito prazer?

Mais uma vez ela não tinha conseguido se controlar.

Ralf parou de comer a pizza.

- Sei tudo. E não me interessa.

A resposta viera rápida, e Maria ficou chocada. Então, todo mundo sabia tudo, menos ela? Que mundo era aquele, meu Deus?

- Conheci meus demônios e minhas trevas - continuou Ralf. - Fui até o fundo, experimentei tudo, não apenas nesta área, mas em muitas outras. Entretanto, na última vez em que nos encontramos, fui aos meus limites através do desejo, e não da dor. Mergulhei no fundo da minha alma, e sei que ainda quero coisas boas, muitas coisas boas desta vida.

Teve vontade de dizer: "Uma delas é você, por favor, não siga este caminho." Mas não teve coragem; em vez disso, chamou um táxi e pediu que os levasse até a beira do lago

- onde, uma eternidade antes, tinham andado juntos no dia em que se conheceram. Maria estranhou o pedido, ficou quieta - o instinto lhe dizia que tinha muito a perder, embora sua mente ainda estivesse embriagada com o que acontecera na véspera.

Só acordou de sua passividade quando chegaram ao jardim à beira do lago; embora ainda fosse verão, já começava a fazer muito frio durante a noite.

- O que fazemos aqui? - perguntou, quando saltaram. -Está ventando, vou pegar um resfriado.

- Estive pensando muito em seu comentário na estação de trem. Sofrimento e prazer.

Tire os sapatos.

Ela lembrou-se de que certa vez um dos seus fregueses pedira a mesma coisa, e ficara excitado apenas por olhar seus pés. Será que a aventura não a deixava em paz?

- Vou pegar um resfriado - insistiu.

- Faça o que estou dizendo - insistiu ele. - Não vai pegar nenhum resfriado, se não demorarmos muito. Acredite em mim, como eu acredito em você.

Sem nenhuma razão aparente, Maria entendeu que ele estava querendo ajudá-la; talvez porque já tivesse bebido de uma água muito amarga, e achava que ela corria o mesmo risco. Não queria ser ajudada; estava contente com seu novo mundo, onde descobria que o sofrimento não era mais um problema. Entretanto, pensou no Brasil, na impossibilidade de encontrar um parceiro para compartilhar este universo diferente, e como o Brasil era mais importante que tudo em sua vida, ela tirou os sapatos. O chão estava cheio de pequenas pedras, que logo rasgaram suas meias, mas isso não tinha importância, compraria outras.

- Tire o casaco.

Ela podia ter dito que "não" mas, desde a noite anterior, acostumara-se à alegria de poder dizer "sim" a tudo que estava no seu caminho. Tirou o casaco, o corpo ainda quente não reagiu logo, mas aos poucos o frio começou a incomodá- la.

- Vamos andar. E vamos conversar.

- Aqui é impossíveclass="underline" o chão está cheio de pedras.

- Justamente por isso; quero que você sinta estas pedras, quero que lhe provoquem dor, que a machuquem, porque você deve ter experimentado, assim como eu experimentei, o sofrimento aliado ao prazer, e preciso arrancar isso de sua alma.

Maria sentiu vontade de dizer: "Não precisa, eu gosto." Mas começou a caminhar sem pressa, as solas dos pés começaram a arder, devido ao frio e às pontas das pedras.

- Uma das minhas exposições me levou ao Japão, justamente quando eu estava totalmente envolvido naquilo que você chamou de "sofrimento, humilhação, e muito prazer". Naquela época, eu achava que não havia um caminho de volta, que iria cada vez mais fundo, e nada mais restava na minha vida, exceto a vontade de punir e ser punido.

"Afinal, somos seres humanos, nascemos cheios de culpa, ficamos com medo quando a felicidade se transforma em algo possível, e morremos querendo castigar os outros porque sempre nos sentimos impotentes, injustiçados, infelizes. Pagar seus pecados, e poder castigar os pecadores - ah, isso não é uma delícia? Sim, é ótimo."

Maria andava, a dor e o frio tornavam difícil prestar atenção nas palavras dele, mas ela se esforçava.

- Hoje notei as marcas em seus pulsos.

As algemas. Tinha colocado várias pulseiras para disfarçar; entretanto, os olhos acostumados sempre sabem o que estão buscando.

- Enfim, se tudo aquilo que você experimentou recentemente a está conduzindo a dar este passo, não sou eu que vou impedi-Ia; mas nada disso tem relação com a verdadeira vida.

- Passo?

- Dor e prazer. Sadismo e masoquismo. Chame como quiser, mas se estiver convencida de que este é o seu caminho, sofrerei, lembrarei do desejo, dos encontros, do passeio pelo Caminho de Santiago, de sua luz. Terei guardado em um lugar especial uma caneta, e cada vez que acender aquela lareira me lembrarei de você. Entretanto, não a procurarei mais.

-

- Maria sentiu medo, achou que era hora de recuar, falar a verdade, deixar de fingir que sabia mais que ele.

-

- - O que experimentei recentemente, melhor dizendo, ontem, jamais tinha experimentado. E me assusta que, no limite da degradação, eu pudesse encontrar a mim mesma.

-

- Estava ficando difícil continuar conversando - seus dentes batiam de frio, e seus pés doíam muito.

-

- - Na minha exposição, em uma região chamada Kumano, apareceu um lenhador -

continuou Ralf, como se não tivesse escutado o que ela dizia. - Não gostou dos meus quadros, mas foi capaz de decifrar, através da pintura, o que eu estava vivendo e sentindo.

No dia seguinte, me procurou no hotel, e perguntou se eu estava contente; se estivesse, devia continuar fazendo 0 que gostava. Se não estivesse, deveria acompanhá- lo e passar uns dias com ele.

"Me fez andar nas pedras, como estou fazendo com você agora. Me fez sentir frio. Me obrigou a entender a beleza da dor, só que era uma dor aplicada pela natureza, não pelo homem. Chamava isso de Shugen-do, uma prática milenar.

"Disse- me que era um homem que não tinha medo da dor, e isso era bom, porque para dominar a alma, você tem que aprender também a dominar o corpo. Disse-me também que estava usando a dor de maneira errada, e isso era muito ruim.

"Aquele lenhador, ignorante, achava que me conhecia melhor do que eu, e isso me irritava, ao mesmo tempo que me deixava orgulhoso de saber que os meus quadros eram capazes de expressar exatamente o que eu estava sentindo."

Maria sentiu que uma pedra mais pontiaguda lhe cortara o pé, mas o frio era mais forte, seu corpo estava ficando dormente, e não conseguia acompanhar direito as palavras de Ralf Hart. Por que os homens, neste mundo santo de Deus, só tinham interesse em mostrar- lhe a dor? A dor sagrada, a dor com prazer, a dor com explicações ou sem explicações, mas era sempre dor, dor...

O pé machucado tocou em outra pedra, ela reprimiu o grite e continuou andando. No começo tinha procurado manter sus integridade, seu autodomínio, aquilo que ele chamava de "luz" Mas agora estava andando devagar, enquanto seu estômago seu pensamento davam voltas: pensou em vomitar. Pensou em parar, nada daquilo fazia sentido, e não parou.

Não parou em respeito a si mesma; podia agüentar aquela caminhada descalça pelo tempo que fosse necessário, porque ela não ia durar toda a sua vida. E de repente outro pensamento cruzou o espaço: e se não pudesse comparecer ao Copacabana no dia seguinte, por caus a de um sério problema nos pés, ou por uma febre causada pela gripe que, tinha certeza, iria instalar-se em seu corpo pouco

agasalhado? Pensou nos fregueses que a esperavam, em Milan, que confiava tanto nela, no dinheiro que deixaria de ganhar, na fazenda, nos pais orgulhosos. Mas o sofrimento logo afastou qualquer tipo de reflexão, e ela colocava um pé diante do outro, louca para que Ralf Hart reconhecesse seu esforço, e lhe dissesse que bastava, podia calçar os sapatos.