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Entretanto ele parecia indiferente, longe, como se aquela fosse a única maneira de livrá- la de algo que não conhecia direito, que a seduzia, mas que terminaria por deixar marcas mais fundas que as das algemas. Embora sabendo que ele tentava ajudá- la, e por mais que se esforçasse para ir adiante e mostrar a luz de sua força de vontade, a dor não permitia que ela tivesse pensamentos profanos ou nobres - era apenas dor, que ocupava todo o espaço, a assustava, e a obrigava a pensar que tinha um limite, e que não iria conseguir.

Mas deu um passo.

E outro.

A dor agora parecia invadir a alma e enfraquecê- la espiritualmente, porque uma coisa é fazer um pouco de teatro em um hotel cinco estrelas, nua, com vodca, caviar, e um chicote entre as pernas; outra coisa é estar no frio, descalça, com pedras lhe cortando os pés. Estava desorientada, não conseguia trocar uma só palavra com Ralf Hart, tudo que existia em seu universo eram as pedras pequenas e cortantes que marcavam a trilha por entre as árvores.

Então, quando pensava que ia desistir, um estranho sentimento a invadiu: tinha atingido o seu limite, e além dele estava um espaço vazio, onde parecia flutuar acima de si mesma, e ignorar o que estava sentindo. Seria esta a sensação que os penitentes experimentavam? Na outra extremidade da dor, descobria uma porta para um nível diferente de consciência, e já não havia espaço para mais nada, apenas para a natureza implacável - e para ela mesma, invencível.

Tudo a sua volta transformou-se em um sonho: o jardim mal iluminado, o lago escuro, o homem em silêncio, um casal ou outro que passeava, sem perceber que ela estava descalça, andando com dificuldade. Não sabia se era o frio ou o sofrimento, mas de repente deixou de sentir seu corpo, entrou em um estado em que não existe qualquer desejo ou medo, apenas uma misteriosa - como poderia chamar isso? -, uma misteriosa "paz". O

limite da dor não era o seu limite; podia ir além dele.

Pensou em todos os seres humanos que sofriam sem pedir, e ali estava ela, provocando seu próprio sofrimento - mas aquilo não importava mais, havia cruzado as fronteiras do corpo, e agora lhe restava apenas a alma, a "luz", uma espécie de vazio - que alguém, algum dia, chamou de Paraíso. Existem certos sofrimentos que só podem ser esquecidos quando podemos flutuar acima de nossas dores.

A próxima coisa de que se lembrou foi de Ralf pegando-a no colo, tirando a jaqueta e a colocando em seu ombro. Devia ter desmaiado de frio, mas pouco importava; estava contente, não tinha medo - havia vencido. Não se humilhara diante daquele homem.

Os minutos se transformaram em horas, ela devia ter dormido em seus braços, porque quando acordou, embora ainda fosse noite, estava em um quarto com um aparelho de TV

em um dos cantos, e mais nada. Branco, vazio.

Ralf apareceu com um chocolate quente.

- Tudo bem - disse ele. - Você chegou aonde devia chegar.

- Não quero chocolate, quero vinho. E quero descer para nosso lugar, a lareira, os livros espalhados por todo canto.

Tinha dito "nosso lugar". Não era o que havia planejado.

Olhou os seus pés; afora um pequeno corte, havia apenas marcas vermelhas, que deviam desaparecer em algumas horas. Com certa dificuldade, desceu as escadas sem prestar muita atenção a nada; foi para o seu canto, no tapete ao lado da lareira - descobrira que sempre que estava ali ela se sentia bem, como se fosse o seu "sítio", seu lugar naquela casa.

- O tal lenhador me disse que, quando se faz um tipo de exercício físico, quando se exige tudo de seu corpo, a mente ganha uma força espiritual estranha, que tem a ver com a

"luz" que vi em você. O que sentiu?

- Que a dor é amiga da mulher.

- Esse é o perigo.

- Que a dor tem um limite.

- Essa é a salvação. Não se esqueça disso.

A mente de Maria ainda estava confusa; experimentava a tal

"paz", quando fora além do seu limite. Ele lhe mostrara outro tipo de sofrimento, e também esse lhe dera um estranho prazer.

Ralf pegou uma grande pasta, e abriu-a na sua frente. Eram desenhos.

- A história da prostituição. Foi o que você me pediu, quando nos encontramos.

Sim, havia pedido, mas era apenas uma maneira de passar o tempo, de tentar ser interessante. Isso não tinha a menor importância agora.

- Durante todos estes dias, estive navegando em um mar desconhecido. Não achei que houvesse uma história, pensava apenas que era a profissão mais antiga do mundo, como dizem as pessoas. Mas existe uma história; melhor dizendo, duas histórias.

- E estes desenhos?

Ralf Hart pareceu um pouco decepcionado porque ela não o compreendia, mas logo controlou-se e seguiu adiante.

- São as coisas que coloquei no papel enquanto lia, pesquisava, aprendia.

- Falaremos disso outro dia; hoje não quero mudar de assunto, preciso entender a dor.

- Você a sentiu ontem, e descobriu que ela a conduzia ao prazer. Você a sentiu hoje, e encontrou a paz. Por isso eu lhe digo: não se acostume, porque é muito fácil poder viver com ela, é uma droga poderosa. Está no nosso cotidiano, no sofrimento escondido, na renúncia ao amor, quando o culpamos pela derrota de nossos sonhos. A dor assusta quando mostra sua verdadeira face, mas é sedutora quando está vestida de sacrifício, renúncia. Ou covardia. O ser humano, por mais que a rejeite, sempre encontra um meio de estar com ela, namorá- la, fazer com que seja parte da sua vida.

- Não acredito. Ninguém deseja sofrer.

- Se você conseguir entender que pode viver sem sofrimento, já é um grande passo, mas não creia que outras pessoas irão compreendê- la. Sim, ninguém deseja sofrer, e mesmo assim quase todos procuram a dor, o sacrifício, e sentem-se justificados, puros, merecedores do respeito dos filhos, dos maridos, dos vizinhos, de Deus. Não pensemos nisso agora, saiba apenas que o que move o mundo não é a busca do prazer, mas da renúncia a tudo que é importante.

"O soldado vai para a guerra matar o inimigo? Não: vai morrer por seu país. A mulher gosta de mostrar ao marido 0 quanto está contente? Não: quer que ele veja o quanto se dedica, o quanto sofre para vê-lo feliz. O marido vai para o trabalho achando que encontrará sua realização pessoal? Não: está dando seu suor e suas lágrimas pelo bem da família. E por aí vai: filhos que renunciam aos sonhos para alegrar os pais, pais que renunciam à vida para alegrar os filhos, dor e sofrimento justificando aquilo que devia trazer apenas alegria: amor."

- Pare.

Ralf parou. Era o momento certo para mudar de assunto, e come çou a mostrar um desenho após o outro. No início, tudo parecia confuso, havia contornos de pessoas - mas também rabiscos, cores, traços nervosos ou geométricos. Aos poucos, porém, ela começou a entender o que ele dizia, porque cada palavra sua era acompanhada de um gesto de mão, e cada frase a colocava no mundo de que até então se negara a fazer parte dizendo para si mesma que tudo não passava de um período em sua vida, uma maneira de ganhar dinheiro e nada mais.

- Sim, descobri que não há apenas uma, mas duas histórias sobre a prostituição. A primeira você conhece muito bem porque é também a sua: uma moça bonita, por diversas razões que ela escolheu, ou que escolheram por ela, descobre que a única maneira de sobreviver é vender o seu corpo. Algumas terminam dominando nações, como Messalina fez com Roma, outras se transformam em mitos, como Madame Du Barry, outras ainda namoram a aventura e a desgraça ao mesmo tempo, como a espiã Mata Hari. Mas a maioria jamais irá encontrar um momento de glória ou um grande desafio: serão para sempre meninas do interior que vêm em busca de fama, marido, aventura, e acabam descobrindo uma outra realidade, mergulham nela por algum tempo, se acostumam, acham que estão sempre no controle, e não conseguem fazer mais nada.

"Os artistas continuam fazendo suas esculturas, pinturas, e escrevendo seus livros há mais de três mil anos. Da mesma maneira, as prostitutas continuam seu trabalho através do tempo como se nada tivesse mudado muito. Quer saber detalhes?"