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Maria fez que sim com a cabeça. Precisava ganhar tempo, entender a dor, começava a ter a sensação de que algo muito ruim havia saído de seu corpo enquanto caminhava no parque.

- Aparecem prostitutas nos textos clássicos, nos hieróglifos egípcios, na escrita suméria, no Antigo e no Novo Testamento. Mas a profissão só começa a se organizar no século VI a.C., quando o legislador Sólon, na Grécia, institui bordéis controlados pelo Estado, e inicia a cobrança de impostos pelo "comércio da carne". Os homens de negócios atenienses se alegram porque o que antes era proibido agora passa a ser legal. As prostitutas, por seu lado, começam a ser classificadas segundo os impostos que pagam.

"A mais barata é chamada de pornai, escrava que pertence aos donos do estabelecimento. Em seguida, vem a peripatética, que consegue seus fregueses na rua.

Finalmente, no nível mais alto de preço e de qualidade, está a hetaira, à companhia feminina', que acompanha os homens de negócios em suas viagens, freqüenta os restaurantes chiques, é dona de seu próprio dinheiro, dá conselhos, interfere na vida política da cidade. Como você vê, o que aconteceu ontem, acontece também hoje.

"Na Idade Média, por causa das doenças sexualmente transmissíveis..."

Silêncio, medo de gripe, calor da lareira - agora necessária para aquecer seu corpo e sua alma. Maria não quer mais ouvir aquela história - dava- lhe a sensação de que o mundo havia parado, que tudo se repetia, e o homem jamais seria capaz de dar ao sexo o respeito merecido.

- Você não parece interessada.

Ela fez um esforço. Afinal de contas, era o homem a quem decidira entregar seu coração, embora já não estivesse tão segura.

- Não estou interessada naquilo que conheço; isso me entristece. Você me disse que havia outra história.

- A outra história é exatamente o oposto: a prostituição sagrada.

De repente, ela saíra do seu estado sonolento e o escutava com atenção. Prostituição sagrada? Ganhar dinheiro com sexo, e ainda assim aproximar-se de Deus?

- O historiador grego Heródoto escreve a respeito de Babilônia: "Existe ali um costume muito estranho: toda mulher que nasceu na Suméria é obrigada, pelo menos uma vez na vida, a ir até o templo da deusa Ishtar e entregar seu corpo a um desconhecido, como símbolo de hospitalidade, e por um preço simbólico."

Depois iria perguntar quem era esta deusa; talvez também ela a ajudasse a recuperar algo que havia perdido, e não sabia o que era.

- A influência da deusa Ishtar espalhou-se por todo o Oriente Médio, atingiu a Sardenha, Sicília, e os portos do mar Mediterrâneo. Mais tarde, durante o Império Romano, outra deusa, Vesti, exige a virgindade total, ou a entrega total. Para manter o fogo sagrado, mulheres do seu templo se encarregavam de iniciar os jovens e os reis no caminho da sexualidade: cantavam hinos eróticos, entravam em transe, e entregavam seu êxtase ao universo, numa espécie de comunhão com a divindade.

Ralf Hart mostrou uma fotocópia de algumas letras antigas, com a tradução em alemão no pé da página. Declamou-a devagar, traduzindo cada verso: Quando estou sentada à porta de uma taverna, eu, Ishtar, a deusa, sou prostituta, mãe, esposa, divindade. Sou o que chamam de Vida Embora vocês chamem de Morte. Sou o que chamam de Lei Embora vocês chamem de Marginal. Eu sou o que vocês buscam E aquilo que conseguiram. Eu sou aquilo que vocês espalharam E agora recolhem meus pedaços.

Maria soluçou um pouco, e Ralf Hart riu; sua energia vital estava voltando, a "luz"

começava de novo a brilhar. Era melhor continuar com a história, mostrar os desenhos, fazê-la sentir-se amada.

- Ninguém sabe por que a prostituição sagrada desapareceu, depois de haver durado pelo menos dois milênios. Talvez por causa das doenças, ou de uma sociedade que mudou suas regras quando as religiões também mudaram. Enfim, isso não existe mais, e não voltará a existir. Hoje em dia, os homens controlam o mundo, e o termo serve apenas para criar um estigma, e chamar de prostituta qualquer mulher que ande fora da linha. - Você pode ir ao Copacabana amanhã?

Ralf não entendeu a pergunta, mas concordou imediatamente.

Do diário de Maria, na noite em que caminhou descalça pelo jardim Inglês em Genève:

Não me interessa se algum dia já foi sagrado ou não, mas EU ODEIO O QUE FAÇO.

Está destruindo minha alma, me fazendo perder o contato comigo mesma, me ensinando que a dor é uma recompensa, o dinheiro compra tudo, justifica tudo.

Ninguém é feliz à minha volta; os clientes sabem que precisam pagar por aquilo que deveriam ter de graça, e isso é deprimente. As mulheres sabem que precisam vender aquilo que gostariam de entregar apenas por prazer e carinho, e asso é destruidor. Lutei muito antes de escrever isso, aceitar que estava infeliz, descontente - precisava e ainda preciso resistir mais algumas semanas.

Entretanto, não dá mais para ficar quieta, fingir que está tudo normal, que é um período, uma época da minha vida. Quero esquecê- la, preciso amar - só isso, preciso amar.

A vida é curta - ou longa demais - para que eu possa me dar ao luxo de vivê-la tão mal. 194

Não é a casa dele. Não é a sua casa. Não é nem Brasil, nem Suíça, mas um hotel - que pode estar em qualquer lugar do mundo, sempre com os mesmos móveis, e aquele ambiente que pretende ser familiar, o que o faz ainda mais distante.

Não é o hotel com a bela vista para o lago, a lembrança da dor, do sofrimento, do êxtase; suas janelas dão para o Caminho de Santiago, uma rota de peregrinação mas não de penitência, um lugar onde as pessoas se encontram nos cafés à beira da estrada, descobrem a "luz", conversam, ficam amigas, se apaixonam. Está chovendo, e a essa hora da noite ninguém anda por ali, mas andaram durante muitos anos, décadas, séculos - talvez o caminho precise respirar, descansar um pouco dos muitos passos que todos os dias se arrastam por ele.

Apagar a luz. Fechar as cortinas.

Pedir que tire a roupa, tirar também a sua. A escuridão física nunca é total, e quando os olhos já estão acostumados, poder ver, no contorno de uma pequena luz que entra não se sabe de onde, a silhueta do homem. Da outra vez que se encontraram, apenas ela havia deixado parte do seu corpo nu.

Tirar dois lenços, cuidadosamente dobrados, lavados, e enxaguados várias vezes, de modo a não deixar nenhum traço de perfume ou de sabão. Aproximar-se dele e pedir que vende seus olhos. Ele hesita por um momento, e comenta sobre alguns dos infernos por que já passou. Ela diz que não se trata disso, que precisa apenas da escuridão total, que agora é sua vez de ensinar-lhe algo, como ontem ele lhe havia ensinado sobre a dor. Ele se entrega, coloca a venda. Ela faz o mesmo; agora já não há fresta de luz, estão no verdadeiro escuro, um precisa da mão do outro para chegar até a cama.

Não, não devemos nos deitar. Vamos nos sentar como sempre fizemos, frente a frente, só que um pouco mais perto, de modo que meus joelhos toquem os seus joelhos.

Sempre quis fazer isso. Mas nunca tinha o que precisava: tempo. Nem com o seu primeiro namorado, nem com o homem que a penetrou pela primeira vez. Nem com o árabe que pagou mil francos, talvez esperando mais do que ela foi capaz de dar embora mil francos não bastassem para ela comprar o que desejava. Nem com os muitos homens que passaram pelo seu corpo, entraram e saíram de suas pernas, às vezes pensando apenas em si mesmos, às vezes pensando também nela, às vezes com sonhos românticos, às vezes apenas com o instinto de repetir algo porque lhes disseram que é assim que um homem age, e se não agir assim, não é homem.

Lembra-se do seu diário. Está farta, quer que as semanas que faltam passem rapidamente, e por isso entrega-se a este homem, porque ali está a luz de seu próprio amor escondido. O pecado original não foi a maçã que Eva comeu, foi achar que Adão precisava compartilhar exatamente o que ela havia experimentado. Eva tinha medo de seguir o seu caminho sem a ajuda de alguém, então quis dividir o que sentia.