Certas coisas não se dividem. Não devemos ter medo dos oceanos em que mergulhamos por nossa livre vontade; o medo atrapalha o jogo de todo mundo. O homem está passando por infernos para entender isso. Amemos uns aos outros, mas não tentemos possuir uns aos outros.
Eu amo este homem que está diante de mim, porque eu não o possuo, e ele não me possui. Somos livres em nossa entrega, preciso repetir isso dezenas, centenas, milhões de vezes, até que termine por acreditar em minhas próprias palavras.
Pensa um pouco nas outras prostitutas que trabalham com ela. Pensa na sua mãe, nas suas amigas. Todas acreditam que o homem deseja apenas onze minutos por dia, e pagam um dinheirão por isso. Não, não é assim; o homem também é uma mulher; quer encontrar alguém, descobrir um sentido para sua vida.
Será que sua mãe se comporta como ela, e finge ter orgasmo com seu pai? Ou será que, no interior do Brasil, ainda é proibido mostrar que uma mulher tem prazer no sexo?
Sabe tão pouco da vida, do amor, e agora - com os olhos vendados e todo 0 tempo do mundo - vai descobrindo a origem de tudo, e tudo começa onde e como ela gostaria de ter começado.
O toque. Esquece as prostitutas, os clientes, sua mãe e seu pai, agora está na escuridão total. Passou a tarde inteira procurando o que poderia dar para um homem que lhe devolvia a dignidade, lhe fazia entender que a busca da alegria é mais importante do que a necessidade da dor.
Eu gostaria de lhe dar a felicidade de ensinar- me algo novo, como ontem me ensinou sobre sofrimento, prostitutas de rua, prostitutas sagradas. Vi que é feliz quando está me fazendo aprender algo, então que me faça aprender, que me guie. Eu gostaria de saber como se chega até o corpo, antes de se chegar na alma, na penetração, no orgasmo.
Estende o braço em sua direção, e pede que ele faça o mesmo. Sussurra poucas palavras, dizendo que aquela noite, naquele lugar de ninguém, gostaria que ele descobrisse sua pele, a fronteira entre ela e o mundo. Pede que a toque, que a sinta com suas mãos, porque os corpos se entendem, embora nem sempre as almas estejam de acordo. Ele começa a tocá- la, ela também o toca, e ambos, como se tivessem combinado tudo antes, evitam as partes do corpo em que a energia sexual aflora mais rapidamente.
Os dedos tocam o seu rosto, ela sente um pouco o cheiro de tinta, um cheiro que sempre permanecerá ali, por mais que ele lave aquelas mãos milhares, milhões de vezes, que estava ali quando nasceu, quando ele deve ter visto a primeira árvore, a primeira casa, e ter decidido desenhá - la em seus sonhos. Também ele deve estar sentindo algum cheiro em sua mão, mas ela não sabe o que é, e não quer perguntar, porque neste momento tudo é corpo, o resto é silêncio.
Acaricia, e sente-se acariciada. Poderia ficar assim a noite inteira, porque é gostoso, não vai terminar necessaria mente em sexo - e neste momento, justamente porque não tem obrigação, ela sente um calor entre as pernas, e sabe que ficou úmida. Vai chegar a hora em que ele tocará o seu sexo, descobrirá que está molhado, não sabe se é bom ou ruim, mas é assim que seu corpo está reagindo, e não pretende dizer para ir por aqui, ir por ali, mais devagar, mais rápido. As mãos do homem agora estão tocando as suas axilas, os pêlos de seus braços se eriçam, ela tem vontade de empurrá- las dali - mas é bom, embora talvez seja dor o que esteja sentindo. Faz o mesmo nele, nota que as axilas têm uma textura diferente, talvez por causa do desodorante que ambos usam, mas no que está pensando? Não deve pensar. Deve tocar, isso é tudo.
Os dedos dele traçam círculos em torno do seu seio, como um animal que espreita.
Ela quer que se movam mais rápido, que toque logo os bicos, porque o seu pensamento está indo mais veloz que as mãos dele, mas, talvez sabendo disso, ele provoca, delicia-se, e tarda uma infinidade até chegar ali. Estão duros, ele brinca um pouco, e aquilo deixa o seu corpo mais arrepiado, e seu sexo mais quente e mais úmido. Agora ele passeia por seu ventre, desvia-se e vai até as pernas, os pés, sobe e desce as mãos pelo lado interno de suas coxas, sente o calor, mas não se aproxima, é um toque doce, leve, e quanto mais leve, mais alucinante.
Ela faz o mesmo, mantendo as mãos quase flutuando, tocando apenas os cabelos das pernas, e também sente o calor, quando se aproxima do sexo. De repente é como se tivesse recuperado misteriosamente a virgindade, como se descobrisse pela primeira vez o corpo de um homem. Toca-o. Não está duro como imaginava, e ela está toda molhada, isso é injusto, mas talvez o homem precise de mais tempo, sei lá.
E começa a acariciá- lo como só as virgens sabem fazer, porque as prostitutas já se esqueceram. O homem reage, o sexo começa a crescer em suas mãos, e ela aumenta lentamente a pressão, sabendo agora onde deve tocar, mais na parte de baixo que na de cima, deve envolvê- lo com os dedos, puxar a pele para trás, em direção ao corpo. Agora ele está excitado, muito excitado, toca os lábios de sua vagina, mantendo a suavidade, e ela tem vontade de pedir que seja mais forte,, coloque os dedos lá dentro, na parte de cima. Mas ele não faz isso, espalha no clitóris um pouco do líquido que jorra de seu ventre, e de novo faz os mesmos movimentos circulares que fez nos seus mamilos. Aquele homem a toca como se fosse ela mesma.
Uma das mãos dele subiu de novo para o seu seio, como é bom, como gostaria que ele a abraçasse agora. Mas não, estão descobrindo o corpo, têm tempo, precisam de muito tempo. Podiam fazer amor agora, seria a coisa mais natural do mundo, e possivelmente seria bom, mas tudo aquilo é tão novo, precisa controlar-se, não quer estragar tudo.
Lembra-se do vinho que tomaram na primeira noite, lentamente, sorvendo cada gole, sentindo que a esquentava, a fazia ver o mundo diferente, a deixava mais solta e mais em contato com a vida.
Deseja também beber aquele homem, e então poderá esquecer para sempre o mau vinho, que se toma de um gole, dá uma sensação de embriaguez, mas termina em dor de cabeça e um buraco na alma.
Ela pára, suavemente entrelaça seus dedos nas mãos dele, escuta um gemido e tem vontade de gemer também, mas se controla, sente que aquele calor se espalha por todo o seu corpo, o mesmo deve estar acontecendo com ele. Sem orgasmo a energia se dispersa, vai até o cérebro, não a deixa pensar em mais nada a não ser em ir até o final, mas é isso que ela quer - parar, parar no meio, espalhar o prazer por todo o corpo, invadir a mente, renovar o compromisso e o desejo, voltar a ser virgem.
Tira suavemente a venda dos seus próprios olhos, e faz o mesmo com ele. Acende a luz da mesa-de-cabeceira. Os dois estão nus, e não sorriem, apenas se olham. Eu sou o amor, eu sou a música, pensa ela. Vamos dançar.
Mas não diz nada disso: conversam alguma coisa trivial, quando vamos nos encontrar de novo, ela marca uma data, talvez daqui a dois dias. Ele diz que gostaria que o acompanhasse em uma exposição, ela vacila. Isso significaria conhecer seu mundo, seus amigos, e o que vão dizer, o que vão pensar.
Diz que não. Mas ele percebe que sua vontade era dizer sim, então insiste, usando alguns argumentos tolos, mas que fazem parte da dança que estão dançando agora, ela termina por ceder, porque era isso que queria. Marca um lugar para se encontrarem, no mesmo café a que foram no primeiro dia. Ela diz que não, os brasileiros são supersticiosos, e não devem se encontrar no lugar onde se viram no primeiro dia, porque aquilo pode fechar um ciclo, e acabar tudo.
Ele diz que está contente, porque ela não quer fechar este ciclo. Decidem por uma igreja de onde se pode ver a cidade, e que está no Caminho de Santiago, parte da misteriosa peregrinação que os dois têm feito desde que se encontraram.
Do diário de Maria, na véspera de comprar sua passagem de avião para o Brasiclass="underline" Era uma vez um pássaro. Adornado com um par de asas perfeitas e plumas reluzentes, coloridas e maravilhosas. Enfim, um animal feito para voar livre e solto do céu, alegrar quem o observasse.