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Um dia, uma mulher viu este pássaro e se apaixonou por ele. Ficou olhando o seu vôo com a boca aberta de espanto, o coração batendo mais rápido, os olhos brilhando de emoção. Convidou-o para voar com ela, e os dois viajaram pelo céu em completa harmonia.

Ela admirava, venerava, celebrava o pássaro.

Mas então pensou: talvez ele queira conhecer algumas montanhas distantes! E a mulher sentiu medo. Medo de nunca mais sentir aquilo com outro pássaro. E sentiu inveja, inveja da capac idade de voar do pássaro.

E sentiu-se sozinha.

E pensou: "Vou montar uma armadilha. A próxima vez que o pássaro surgir, ele não mais partirá."

O pássaro, que também estava apaixonado, voltou no dia seguinte, caiu na armadilha, e foi preso na gaiola.

Todos os dias ela olhava o pássaro. Ali estava o objeto de sua paixão, e ela mostrava para suas amigas, que comentavam: Mas você é uma pessoa que tem tudo." Entretanto, uma estranha transformação começou a processar-se: como tinha o pássaro, e já não precisava conquistá- lo, foi perdendo o interesse. O pássaro, sem poder voar e exprimir o sentido de sua vida, foi definhando, perdendo o brilho, ficou feio - e a mulher já não prestava mais atenção nele, apenas na maneira como o alimentava e como cuidava de sua gaiola.

Um belo dia, o pássaro morreu. Ela ficou profundamente triste, e vivia pensando nele.

Mas não se lembrava da gaiola, recordava apestas o dia em que o vira pela primeira vez, voando contente entre as nuvens.

Se ela observasse a si mesma, descobriria que aquilo que a emocionava tanto no pássaro era a sua liberdade, a energia das asas em movimento, não o seu corpo físico.

Sem o pássaro, sua vida também perdeu o sentido, e a morte veio bater à sua porta.

"Por que você veio perguntou à morte.

"Para que você possa voar de novo com ele nos céus'; respondeu a morte. "Se o tivesse deixado partir e voltar sempre, você o amaria e o admiraria ainda mais, - entretanto, agora você precisa de mim para poder encontrá-lo de novo."

Começou o dia fazendo algo que ensaiara durante todos aqueles meses: entrar em uma agência de viagens e comprar uma passagem para o Brasil, na data que marcara em seu calendário.

Agora faltavam apenas mais duas semanas na Europa. A partir daquele momento, Genève seria o rosto de um homem que amo u, e por quem fora amada. A Rue de Berne seria um nome, homenagem à capital da Suíça. Lembraria do seu quarto, do lago, da língua francesa, das loucuras que uma menina de vinte e três anos (seu aniversário fora na véspera) é capaz de fazer - até entender que há um limite.

Não iria prender o pássaro, ou pedir que a acompanhasse ao Brasil; ele era a única coisa verdadeiramente pura que lhe havia acontecido. Um pássaro como esse tem que voar livre, alimentar-se da saudade de um tempo em que voou junto com alguém. E ela também era um pássaro; ter Ralf Hart ao seu lado seria lembrar para sempre dos dias no Copacabana. E isso era seu passado, não o seu futuro.

Decidiu que ia dizer "adeus" apenas uma vez, quando chegasse o momento da partida; não ficaria sofrendo a cada lembrança de que "em breve já não estarei mais aqui". Portanto, enganou seu coração e caminhou por Genève naquela manhã como tivesse sempre passeado por aquelas ruas, a colina, o Caminho de Santiago, a ponte de Montblanc, os bares que costumava frequentar. Acompanhou o vôo das gaivotas no rio, os comerciantes recolhendo as barracas, as pessoas saindo dos seus escritórios para almoçar, a cor e o gosto da maçã que estava comendo, os aviões pousando a distância, o arco-íris na coluna de água que subia do meio do lago, a alegria tímida e escondida de todos que passavam por ela, os olhares de desejo, os olhares sem expressão, os olhares. Vivera quase um ano em uma cidade pequena, como tantas outras cidades pequenas no mundo, e se não fosse pela arquitetura peculiar e pelo excesso de letreiros de bancos, ela podia estar no interior do Brasil. Havia feira. Havia mercado. Havia donas de casa discutindo o preço. Havia estudantes que haviam deixado a aula antes da hora, talvez com alguma desculpa sobre pai e mãe doentes, e agora passeavam e se beijavam nas margens do rio. Havia gente que se sentia em casa, e gente que se sentia estrangeira. Havia jornais que falavam de escândalos, e respeitáveis revistas para homens de negócios que, por sinal, só eram vistos lendo jornais sobre escândalos.

Foi até a biblioteca devolver o manual sobre administração de fazendas. Não tinha entendido nada, mas o livro lhe recordara, nos momentos em que pensava ter perdido o controle de si mesma e de seu destino, qual era o objetivo de sua vida. Tinha sido um companheiro silencioso, com sua capa amarela sem desenhos, uma série de gráficos, mas, sobretudo, tinha sido um farol nas noites escuras das semanas mais recentes.

Sempre fazendo planos para o futuro. E sempre sendo surpreendida pelo presente, dizia a si mesma. Pensava em como havia descoberto a si mesma através da independência, do desespero, do amor, da dor, para logo encontrar-se com o amor de novo - e gostaria que as coisas terminassem por ali.

O mais curioso disso tudo é que, enquanto algumas de suas companheiras de trabalho falavam das virtudes e do êxtase por estar com certos homens na cama, ela jamais tinha se descoberto melhor ou pior através do sexo. Não resolvera seu problema, era incapaz de ter um orgasmo com a penetração, e vulgarizara tanto o ato sexual que talvez não conseguisse nunca mais encontrar no "abraço do reencontro" -como Ralf Hart o chamava - o fogo e a alegria que buscava.

Ou talvez (como costumava pensar de vez em quando) sem amor fosse impossível ter qualquer prazer na cama, como diziam as mães, os pais, os livros românticos.

A bibliotecária, normalmente séria (e sua única amiga, embora jamais lhe tivesse dito isso), estava de bom humor. Atendeu-a na hora do almoço e convidou-a para compartilhar um sanduíche. Maria agradeceu e disse que tinha acabado de almoçar.

- Você demorou muito para ler.

- Não entendi nada.

- Você se lembra do que me pediu uma vez?

Não, não lembrava, mas depois que viu o sorriso malicioso no ar da mulher à sua frente, imaginou o que teria sido. Sexo.

- Sabe, desde que você veio aqui procurando por este tipo de assunto, eu resolvi fazer um levantamento do que tínhamos. Não era muito, e como precisamos educar nossa juventude, eu encomendei alguns. Assim, não precisam aprender da pior maneira possível, com prostitutas, por exemplo.

A bibliotecária apontou para uma pilha de livros em um canto, todos cuidadosamente encapados com papel pardo.

- Ainda não tive tempo de classificá-los, mas andei dando uma olhada e fiquei horrorizada com o que descobri.

Bem, já podia adivinhar o que a mulher diria: posições constrangedoras, sadomasoquismo, e coisas deste tipo. Melhor dizer que tinha que voltar a trabalhar (não sabia onde tinha dito que trabalhava, se em um banco, ou em uma loja - mentira dava muito trabalho, ela se esquecia sempre).

Agradeceu, fez sinal de que ia sair, mas a outra comentou:

- Você também ia ficar horrorizada. Por exemplo: sabia que o clitóris é uma invenção recente?

Invenção? Recente? Ainda esta semana alguém tinha tocado no seu, como se sempre estivesse ali, e como se aquelas mãos conhecessem bem o terreno que estava sendo explorado - apesar da escuridão completa.

- Foi oficialmente aceito em 1559, depois que um médico, Realdo Columbo, publicou um livro chamado De re anatomica. Durante mil e quinhentos anos da era cristã, ele foi oficialmente ignorado. Columbo o descreve, em seu livro, como "uma coisa bonita e útil", você acredita?

As duas riram.

- Dois anos depois, em 1561, outro médico, Gabrielle Fallopio, disse que a

"descoberta" tinha sido dele. Veja só! Dois homens, italianos, claro, que entendem do assunto, discutindo quem havia oficialmente colocado o clitóris na história do mundo!

Aquela conversa era interessante, mas Maria não queria pensar no assunto, principalmente porque sentia de novo 0 líquido escorrendo, e o sexo ficando molhado -só de lembrar do toque, das vendas, das mãos que passeavam no seu corpo. Não, não estava morta para o sexo, aquele homem a havia resgatado de alguma maneira. Que bom continuar viva.