A bibliotecária, porém, estava entusiasmada:
- Mesmo depois de "descoberto", continuou a ser desrespeitado - disse ela, parecendo uma perita em clitoriologia, ou seja lá qual fosse o nome desta ciência. -As mutilações que lemos hoje nos jornais, praticadas por certas tribos da África que ainda tiram da mulher o direito ao prazer, não são nenhuma novidade. Aqui mesmo na Europa, no século XIX, ainda se faziam operações para eliminar o clitóris, acreditando que naquela pequena e insignificante parte da anatomia feminina estava toda a fonte de histeria, epilepsia, tendência ao adultério e incapacidade de ter filhos.
Maria estendeu a mão para despedir -se, mas a bibliotecária não dava sinais de cansaço.
- Pior ainda, nosso querido Freud, o descobridor da psicanálise, dizia que o orgasmo feminino, em uma mulher normal, deve mover-se do clitóris para a vagina. Seus mais fiéis seguidores, desenvolvendo esta tese, passaram a afirmar que o fato de manter o prazer sexual concentrado no clitóris era um sinal de infantilidade, ou, o que é pior, de bissexualidade.
"E no entanto, como rodas nós sabemos, é muito difícil ter um orgasmo apenas com a penetração. É bom ser possuída por um homem, mas o prazer está naquele grãozinho ali, descoberto por um italiano!"
Distraída, Maria reconheceu que tinha o problema diagnosticado por Freud: ainda era infantil, seu orgasmo não tinha se deslocado para a vagina. Ou será que Freud estava errado?
- E o ponto G, o que você acha?
- A senhora sabe onde fica?
A mulher ficou corada, tossiu, mas teve coragem de responder:
- Logo que você entra, no primeiro andar, janela dos fundos.
Genial! Descrevera a vagina como um edifício! Talvez tivesse lido aquela explicação em um livro para meninas: depois que alguém bater à porta e entrar, vai descobrir todo um universo dentro do próprio corpo. Sempre que se masturbava, preferia o tal ponto G ao clitóris, já que este lhe dava uma certa aflição, um prazer misturado com agonia, algo angustiante.
Ia sempre para o primeiro andar, janela dos fundos!
Vendo que a mulher não ia parar de falar - talvez tivesse acabado de descobrir nela uma cúmplice de sua própria sexualidade perdida -, acenou com a mão, saiu, e procurou continuar se concentrando em qualquer bobagem, porque não era dia de pensar em despedidas, clitóris, virgindade refeita, ou ponto G. Prestou atenção nos ruídos - sinos que tocavam, cachorros latindo, o tram (que era como eles chamavam os bondes locais) rangendo nos trilhos, os passos, a respiração, os letreiros que ofereciam tudo.
Já não tinha vontade de voltar ao Copacabana. Mesmo assim sentia-se na obrigação de levar seu trabalho até o final, embora desconhecesse a verdadeira razão - afinal de contas, já tinha conseguido economizar o suficiente. Durante aquela tarde, podia fazer algumas compras, conversar com um ge rente de banco que era seu cliente mas que havia prometido ajudá- la com suas economias, tomar um café, mandar pelo correio algumas roupas que não caberiam na bagagem. Estranho, estava um pouco triste, não conseguia entender; talvez porque ainda faltassem duas semanas, precisava fazer passar o tempo, olhar a cidade com outros olhos, alegrar-se por ter vivido tudo aquilo.
Chegou a um cruzamento que já atravessara centenas de vezes; dali podia ver o lago, a coluna de água e - no meio do jardim que se estendia do outro lado da calçada - o belo relógio de flores, um dos símbolos da cidade, e ele não a deixava mentir, porque...
De repente, o tempo, o mundo ficou imóvel.
Que história era aquela de virgindade recém-recuperada, que pensava desde que acordara?
O mundo parecia congelado, aquele segundo não passava nunca, ela estava diante de algo muito sério e muito importante em sua vida, não podia esquecer, não podia fazer como os seus sonhos noturnos; sempre prometia anotá-los, e nunca se lembrava...
"Não pense em nada. O mundo parou. O que está acontecendo?"
CHEGA!
O pássaro, a linda história do pássaro que acabara de escrever, era sobre Ralf Hart?
Não, era sobre ela mesma!
PONTO FINAL!
Eram 11:11h da manhã, e ela estava parando naquele momento. Era uma estrangeira em seu próprio corpo, estava redescobrindo a virgindade recém-recuperada, mas seu renascer era tão frágil, que se continuasse ali estaria perdida para sempre. Experimentara o céu talvez, o inferno com certeza, mas a aventura chegava ao final. Não podia esperar duas semanas, dez dias, uma semana - precisava ir embora correndo - porque, ao olhar aquele relógio cheio de flores, com turistas tirando fotografias e crianças brincando ao redor, acabara de descobrir o motivo de sua tristeza.
E o motivo era o seguinte: não queria voltar.
E a razão não era Ralf Hart, a Suíça, a aventura. A verdadeira razão era simples demais: dinheiro.
Dinheiro! Um pedaço de papel especial, pintado com cores sóbrias, que todo mundo dizia valer alguma coisa - e ela acreditava, todos acreditavam nisso - até o momento em que fosse com uma montanha daquele papel a um banco, um respeitável, tradicional, secretíssimo banco suíço, e pedisse: "Posso adquirir um pouco de horas para minha vida?"
"Não, senhora, não vendemos isso; só compramos."
Maria foi despertada de seu delírio pela freada de um carro, a reclamação de um motorista, e um velhinho sorridente, falando inglês, e pedindo que recuasse - o sinal estava fechado para pedestres.
"Bem, acho que descobri algo que todo mundo deve saber."
Mas não sabiam: olhou à sua volta, pessoas andando de cabeça baixa, correndo para ir ao trabalho, à escola, a uma agência de empregos, à Rue de Berne, sempre dizendo: "Posso esperar um pouco mais. Tenho um sonho, mas ele não precisa ser vivido hoje, porque preciso ganhar dinheiro." Claro, seu emprego era amaldiçoado - mas no fundo tratava-se apenas de vender seu tempo, como todo mundo. Fazer coisas de que não gostava, como todo mundo. Aturar gente insuportável, como todo mundo. Entregar seu precioso corpo e sua preciosa alma em nome de um futuro que nunca chegava, como todo mundo. Dizer que ainda não tinha o bastante, como todo mundo. Aguardar só mais um pouquinho, como todo mundo. Esperar mais um pouco, ganhar algo mais, deixar para realizar seus desejos depois, no momento estava muito ocupada, tinha uma oportunidade diante de si, clientes que a esperavam, que eram fiéis, que podiam pagar de trezentos e cinqüenta até mil francos por noite.
E pela primeira vez na vida, apesar de todas as coisas boas que podia comprar com o dinheiro que ganhasse - quem sabe, apenas mais um ano? -, ela resolveu consciente, lúcida e propositadamente deixar passar uma oportunidade.
Maria esperou que o sinal abrisse, atravessou a rua, parou diante do relógio de flores, pensou em Ralf, sentiu de novo o seu olhar de desejo na noite em que abaixara parte de seu vestido, sentiu suas mãos lhe tocando os seios, o sexo, o rosto, ficou molhada, olhou para a imensa coluna de água a distância, e sem precisar tocar uma só parte de seu corpo - teve um orgasmo ali, na frente de todo mundo.
Ninguém notou; todos estavam muito, muito ocupados.
Nyah, a única de suas colegas com que tinha uma relação próxima do que se poderia chamar de amizade, chamou-a assim que entrou. Estava sentada com um oriental, e os dois riam. - Veja isso - disse a Maria. - Veja o que quer que eu faça com ele!
O oriental, fazendo um olhar cúmplice e mantendo o sorriso nos lábios, abriu a tampa de uma espécie de caixa de charutos. De longe, Milan espichou o olho para ver se não se tratava de seringas ou drogas. Não, era apenas aquela coisa que nem ele entendia direito como funcionava, mas não era nada de especial.
- Parece coisa do século passado! - disse Maria.