Ela, porém, tinha consciência da própria beleza, e embora quase sempre esquecesse os conselhos da mãe, pelo menos um deles não lhe saía da cabeça: "Minha filha, a beleza não dura." Por causa disso, continuou mantendo uma relação nem próxima nem distante com o patrão, o que significou um considerável aumento de salário (não sabia até quando conseguiria mantê-lo apenas na esperança de um dia levá-la para a cama, mas enquanto isso estava ganhando bem), além de comissão por trabalhar horas extras (afinal de contas, o homem gostava de tê- la por perto, talvez temendo que, se saísse de noite, encontrasse um grande amor). Trabalhou vinte e quatro meses sem parar, passou a dar uma mesada aos pais, e finalmente conseguiu! Arranjou dinheiro suficiente para, nas férias, passar uma semana na cidade de seus sonhos, o lugar dos artistas, o cartão-postal do país: Rio de janeiro!
O chefe se ofereceu para acompanhá- la e pagar todas as suas despesas, mas Maria mentiu, dizendo que a única condição que sua mãe lhe impusera fora dormir na casa de um primo que lutava jiu-jítsu, já que ela estava indo para um dos lugares mais perigosos do mundo.
- Além do mais - continuou -, o senhor não pode deixar a loja assim, sem uma pessoa de confiança tomando conta.
- Não me chame de senhor - disse ele, e Maria reparou em seus olhos aquilo que já conhecia: o fogo da paixão. Isso a surpreendeu, porque achava que aquele homem estava apenas interessado em sexo; entretanto, seu olhar dizia exatamente o oposto : "Posso lhe dar uma casa, uma família, e algum dinheiro para seus pais." Pensando no futuro, resolveu alimentar a fogueira.
Disse que iria sentir muita falta daquele emprego que tanto amava, das pessoas com quem adorava conviver (fez questão de não mencio nar ninguém em particular, deixando no ar o mistério: será que "as pessoas" se referia a ele?), e prometia tomar muito cuidado com sua carteira e sua integridade. A verdade era outra: não queria que ninguém, absolutamente ninguém, estragasse aquela que seria sua primeira semana de total liberdade. Gostaria de fazer tudo - tomar banho de mar, conversar com estranhos, olhar vitrines de lojas, e estar disponível para que um príncipe encantado aparecesse e a raptasse para sempre.
- O que é uma semana, afinal? - disse com um sorriso sedutor, torcendo para que estivesse errada. - Passa rápido, e em breve estarei de volta, cuidando de minhas responsabilidades.
O chefe, desconsolado, lutou um pouco mas terminou aceitando, pois àquela altura já estava fazendo planos secretos de pedi-Ia em casamento assim que voltasse, e não queria ser afoito demais e estragar tudo.
Maria viajou quarenta e oito horas de ônibus, hospedou-se em um hotel de quinta categoria em Copacabana (ah, Copacabana! Esta praia, este céu...), e antes mesmo de desfazer as malas, agarrou um biquíni que havia comprado, colocou-o, e mesmo com o tempo nublado, foi para a praia. Olhou o mar, sentiu pavor, mas terminou entrando em suas águas, morrendo de vergonha.
Ninguém na praia notou que aquela menina estava tendo seu primeiro contato com o oceano, a deusa Iemanjá, as correntes marítimas, a espuma das ondas, e a costa da África com seus leões, do outro lado do Atlântico. Quando saiu da água, foi abordada por uma mulher que vendia sanduíches naturais, um belo negro que lhe perguntou se estava livre para sair naquela noite, e um homem que não falava uma só palavra em português, mas que fazia gestos e a convidava para tomar uma água de coco.
Maria comprou o sanduíche porque teve vergonha de dizer "não", mas evitou falar com os outros dois estranhos. De um momento para o outro, ficou triste; afinal, agora que tinha todas as possibilidades de fazer tudo o que queria, por que agia de maneira absolutamente reprovável? Na falta de uma boa explicação, sentou-se para esperar que o sol surgisse por trás das nuvens, ainda surpresa com sua própria coragem, e com a temperatura da água, tão fria em pleno verão.
O homem que não falava português, entretanto, apareceu ao seu lado com um coco, e lhe ofereceu. Contente de não ser obrigada a conversar com ele, ela bebeu a água do coco, sorriu, e ele sorriu de volta. Por algum tempo, ficaram naquela confortável comunicação que não quer dizer nada - sorriso para cá,
sorriso para lá -, até que o homem tirou um pequeno dicionário de capa vermelha do bolso e disse, com um sotaque estranho: "bonita". Ela sorriu de novo; bem que gostaria de encontrar o seu príncipe encantado, mas ele deveria falar sua língua e ser um pouco mais jovem.
O homem insistiu, folheando o livrinho:
-Jantar hoje?
E logo comentou:
- Suíça!
Completando com palavras que soam como sinos do paraíso, em qualquer língua em que sejam pronunciadas:
- Emprego! Dólar!
Maria não conhecia o restaurante Suíça, mas será que as coisas eram assim tão fáceis, e os sonhos se realizavam tão depressa? Melhor desconfiar: muito obrigada pelo convite, estou ocupada, e tampouco estava interessada em comprar dólares.
O homem, que não entendeu uma só palavra de sua resposta, começou a ficar desesperado; depois de muitos sorrisos para cá, sorrisos para lá, deixou-a por alguns minutos, voltando logo com um intérprete. Por intermédio dele, explicou que vinha da Suíça (não era um restaurante, era o país), e que gostaria de jantar com ela, pois tinha uma oferta de emprego. O intérprete, que se apresentara como assessor do estrangeiro e segurança do hotel onde o homem estava hospedado, acrescentou por sua conta:
- Se fosse você, aceitava. Este homem é um importante empresário artístico, e veio descobrir novos talentos para trabalhar na Europa. Se quiser, posso lhe apresentar outras pessoas que aceitaram o convite, ficaram ricas, e hoje estão casadas e com filhos que não precisam enfrentar assaltos ou problemas de desemprego.
E, completou, tentando impressioná- la com sua cultura internacionaclass="underline" relógios.
- Além do mais, na Suíça fazem excelentes chocolates e
A experiência artística de Maria se resumia a representar uma vendedora de água -
que entrava muda e saía calada - na peça sobre a Paixão de Cristo que a prefeitura sempre encenava durante a Semana Santa. Não tinha conseguido dormir direito no ônibus, mas estava excitada com o mar, cansada de comer sanduíches naturais e antinaturais, e confusa porque não conhecia ninguém, e precisava encontrar logo um amigo. Já passara por aquele tipo de situação antes, quando um homem promete tudo e não cumpre nada - de modo que sabia que esta história de atriz era apenas uma maneira de tentar interessá- la em algo que fingia não querer.
Mas certa de que a Virgem lhe oferecera aquela chance, convencida de que tinha que aproveitar cada segundo daquela sua semana de férias, e conhecer um bom restaurante significava ter algo muito importante para contar quando voltasse à sua terra, resolveu aceitar o convite - desde que o intérprete a acompanhasse, pois já estava ficando cansada de sorrir e fingir que estava entendendo o que o estrangeiro dizia.
O único problema era também o maior de todos: não tinha roupa adequada. Uma mulher jamais confessa estas intimidades (é mais fácil aceitar que seu marido a traiu do que confessar o estado do seu guarda-roupa), mas como não conhecia aqueles homens, e talvez jamais tornasse a vê- los, resolveu que não tinha nada a perder.
- Acabo de chegar do Nordeste, não tenho roupa para ir a um restaurante.
O homem, por intermédio do intérprete, pediu que não se preocupasse, e solicitou o endereço do seu hotel. Naquela tarde, ela recebeu um vestido como jamais tinha visto em toda a sua vida, acompanhado de um par de sapatos que devia ter custado tanto quanto o que ela ganhava durante o ano.
Sentiu que ali começava o caminho pelo qual tanto ansiara durante a infância e adolescência no sertão brasileiro, convivendo com a seca, os rapazes sem futuro, a cidade honesta mas pobre, a vida repetitiva e sem interesse: estava prestes a transformar-se na princesa do universo! Um homem lhe oferecera emprego, dólar, um par de sapatos caríssimos e um vestido de conto de fadas! Faltava maquiagem, mas a balconista que tomava conta do hotel, solidária, ajudou-a, não sem antes preveni-Ia de que nem todos os estrangeiros são bons, e nem todos os cariocas são assaltantes.