Ainda tinha tempo de decidir se ia ou não ao encontro; no momento precisava concentrar-se em coisas mais práticas. Viu quantas coisas tinha deixado fora das malas, sem saber onde colocá-las. Resolveu que o dono do imóvel tomaria a decisão, quando entrasse no apartamento e encontrasse os eletrodomésticos na cozinha, os quadros comprados em um mercado de segunda mão, as toalhas e as roupas de cama. Não poderia levar nada disso para o Brasil, mesmo que seus pais necessitassem mais do que qualquer mendigo suíço; elas sempre iriam lembrá-la de tudo a que se aventurou.
Saiu, foi até o banco e pediu para retirar todo o dinheiro que tinha ali depositado. O
gerente - que já freqüentara sua cama disse que era uma má idéia, aqueles francos poderiam continuar rendendo, e ela receberia os juros no Brasil. Além do mais, caso fosse roubada, seriam muitos meses de trabalho perdido. Maria hesitou por um momento, achando - como sempre achava - que estavam querendo ajudá- la de verdade. Mas, depois de refletir um pouco, concluiu que o objetivo daquele dinheiro não era transformar-se em mais papel, mas em uma fazenda, uma casa para seus pais, algumas cabeças de gado e muito mais trabalho.
Retirou cada centavo, colocou em uma pequena bolsa que comprara especialmente para a ocasião, e amarrou-a na cintura, por baixo da roupa.
Foi até a agência de viagens, rezando para que tivesse coragem de ir adiante; quando quis mudar a passagem, lhe disseram que o vôo do dia seguinte tinha uma escala em Paris, para troca de avião. Não tinha importância - o que precisava era estar longe dali antes que pudesse pensar duas vezes.
Caminhou até uma das pontes, comprou um sorvete embora já começasse a esfriar de novo - e olhou Genève. Então tudo lhe pareceu diferente, como se tivesse acabado de chegar e precisasse ir aos museus, aos monumentos históricos, aos bares e restaurantes da moda. Engraçado que, quando se mora em uma cidade, se mpre se deixa para conhecê-la depois - e geralmente acabamos não a conhecendo nunca.
Pensou em ficar contente porque estava voltando a sua terra, mas não conseguiu.
Pensou em ficar triste por estar deixando uma cidade que a tratara tão bem, e tampouco conseguiu. A única coisa que pôde fazer foi derramar algumas lágrimas, com medo de si mesma, uma moça inteligente, que tinha tudo para ser bem-sucedida, mas que geralmente tomava decisões erradas.
Torceu para que desta vez estivesse certa.
A igreja estava completamente vazia quando entrou, e ela pôde contemplar em silêncio os lindos vitrais, iluminados pela luz exterior, a luz de um dia lavado pela tempestade da noite anterior. Diante dela, um altar com uma cruz vazia; não estava diante de um instrumento de tortura, com um homem ensangüentado à beira da morte - mas de um símbolo de ressurreição, onde o instrumento de suplício perdia todo o seu significado, seu terror, sua importância.
Ficou também contente porque não viu imagens de santos sofrendo, com marcas de sangue e feridas abertas - ali era apenas um lugar onde os homens se reuniam para adorar algo que não podiam compreender.
Parou diante do sacrário, onde estava guardado o corpo de um Jesus em que ela ainda acreditava, embora havia muito tempo não pensasse nele. Ajoelhou-se e prometeu a Deus, à Virgem, a Jesus, e a todos os santos, que acontecesse o que acontecesse durante aquele dia, ela jamais mudaria de idéia, e iria embora de qualquer maneira. Fez esta promessa porque conhecia bem as armadilhas do amor e de como são capazes de transformar a vontade de uma mulher.
Pouco depois ela sentiu a mão que a tocava no ombro, e inclinou seu rosto para que tocasse a mão.
Saíram de mãos dadas, como se fossem dois namorados que haviam se encontrado depois de muito tempo. Beijaram-se em público, algumas pessoas olharam escandalizadas, ambos sorriam pelo mal-estar que estavam causando, e pelos desejos que despertavam com o escândalo - porque sabiam que, na verdade, eles queriam estar fazendo a mesma coisa. O
escândalo era só isso.
Entraram em um café igual a todos os outros, mas que naquela tarde era diferente, porque os dois estavam ali, e se amavam. Conversaram sobre Genève, as dificuldades da língua francesa, os vitrais da igreja, os males do cigarro - já que ambos fumavam e não tinham a menor intenção de abandonar o vício.
Ela fez questão de pagar o café, e ele aceitou. Foram à exposição, ela conheceu seu mundo, os artistas, os ricos que pareciam mais ricos ainda, os milionários que pareciam pobres, as pessoas que perguntavam coisas sobre as quais jamais tinha ouvido falar. Todos gostaram dela, elogiaram sua maneira de falar francês, perguntaram sobre o carnaval, o futebol, a música de seu país. Educados, gentis, simpáticos, envolventes.
Quando saíram, ele disse que iria à boate naquela noite, encontrá-la. Ela pediu que não fizesse isso, tinha a noite livre, gostaria de convidá-lo para jantar.
Ele aceitou, despediram-se, marcaram de encontrar-se na casa dele para jantar em um restaurante simpático na pequena praça de Cologny, onde sempre passavam de táxi, e ela jamais pedira que parassem para conhecer o lugar.
Então Maria lembrou-se da única amiga, e resolveu ir até a biblioteca para dizer que não voltaria mais.
Ficou presa no trânsito por um tempo que parecia uma eternidade, até que os curdos terminassem de se manifestar (de novo!) e os carros pudessem voltar a circular normalmente. Mas agora era de novo dona do seu tempo, isso não tinha importância.
Chegou quando a biblioteca estava quase fechando.
- Pode ser que eu esteja querendo ser íntima demais, mas não tenho nenhuma amiga a quem confiar certas coisas - disse a bibliotecária, assim que Maria entrou.
Aquela mulher não tinha amiga? Depois de viver sua vida inteira no mesmo lugar, encontrar várias pessoas durante o dia, será que não tinha ninguém com quem conversar?
Enfim, descobria alguém como ela - ou melhor dizendo, alguém como todo mundo.
viver na ignorância, achando que um marido fiel, um apartamento com vista para o lago, três filhos e um emprego público era tudo que uma mulher podia sonhar. Agora, desde que você chegou aqui, e desde que li o primeiro livro, ando muito preocupada com aquilo em que transformei minha vida. Será que todo mundo é assim?
- Posso lhe garantir que é - e Maria sentiu-se uma jovem sábia diante daquela mulher que lhe pedia conselhos.
- Gostaria que eu entrasse em detalhes?
Maria acenou positivamente com a cabeça.
- É claro que você ainda é muito jovem para compreender essas coisas, mas justamente por isso gostaria de compartilhar um pouco da minha vida, para que não cometa os mesmos erros que cometi.
"Mas o clitóris, por que será que meu marido nunca prestou atenção a isso? Achava que o orgasmo é na vagina, e me custava muito, mas muito mesmo, fingir algo que ele imaginava que eu deveria estar sentindo. Claro, eu tinha prazer, mas um prazer diferente.
Apenas quando a fricção era na parte superior... você está entendendo?"
- Estou entendendo.
- E agora descobri por quê. Está ali - ela apontou para um livro na sua mesa, cujo título Maria não conseguia ver. - Existe um feixe de nervos que vai do clitóris ao ponto G, e que é predominante. Mas os homens pensam que não, que penetrar é tudo. Você sabe o que é o ponto G?
- Conversamos sobre isso outro dia - disse Maria, desta vez como a Menina Ingênua. -
Logo depois de entrar, primeiro andar, janela dos fundos.
- Claro, claro! - os olhos da bibliotecária se iluminaram. Verifique por você mesma quantos de seus amigos já ouviram falar disso: nenhum ouviu! Que absurdo! Mas assim como o clitóris foi uma invenção do tal italiano, o ponto G é uma conquista do nosso século! Em breve ocupará todas as manchetes, e ninguém mais poderá ignorá- lo! Pode imaginar que momento revolucionário estamos vivendo?