Um dia, num futuro remoto, terei minha passagem, poderei voltar para o Brasil, casar-me com o dono da loja de tecidos, escutar os comentários maldosos das amigas que nunca arriscaram e por isso só conseguem enxergar a derrota dos outros. Não, não posso voltar assim; prefiro atirar- me do avião quando ele estiver cruzando o oceano.
Como as janelas do avião não abrem (aliás, isso foi algo que nunca esperava; que pena não poder sentir o ar puro!), morro aqui mesmo. Mas antes de morrer, quero lutar pela vida. Se eu puder andar sozinha, vou até onde quero.
No dia seguinte matriculou-se imediatamente em um curso matutino de francês, onde conheceu gente de todos os credos, crenças e idades, homens com roupas coloridas e muitas correntes de ouro nos braços, mulheres sempre com um véu na cabeça, crianças que aprendiam mais rápido que os adultos - quando justamente devia ser o contrário, pois os adultos têm mais experiência. Ficava orgulhosa ao saber que todos conheciam seu país, o carnaval, o samba, o futebol, e a pessoa mais famosa do mundo, cha mada Pelê. No início ela quis ser simpática e procurou corrigir a pronúncia (é Pelé! Pelééé! ! !), mas depois de algum tempo desistiu, já que também a chamavam de Mariá, essa mania que os estrangeiros têm de mudar todos os nomes e ainda achar que estão certos.
Durante a tarde, para praticar o idioma, ensaiou seus primeiros passos por aquela cidade de dois nomes, descobriu um chocolate delicioso, um queijo que jamais havia comido, um gigantesco chafariz no meio do lago, a neve que os pés de nenhum dos habitantes de sua cidade tinham tocado, as cegonhas, os restaurantes com lareira (embora jamais tenha entrado em algum, via o fogo lá dentro, e aquilo lhe dava uma agradável sensação de bem-estar). Também ficou surpresa ao descobrir que nem todos os letreiros tinham propaganda de relógios, havia também bancos - embora não conseguisse entender por que existiam tantos bancos para tão poucos habitantes, e pudesse reparar que raramente via alguém no interior das agências, mas resolveu não perguntar nada.
Depois de três meses de autocontrole no trabalho, seu sangue brasileiro - sensual e sexual como todos no mundo pensavam - falou mais alto; ela se apaixonou por um árabe que estudava francês no mesmo curso. O caso durou três semanas até que, uma noite, ela resolveu deixar tudo de lado e visitar uma montanha perto de Genève. Quando chegou ao trabalho na tarde seguinte, Roger mandou que fosse ao seu escritório.
Assim que abriu a porta, foi sumariamente demitida, por dar mau exemplo às outras meninas que ali trabalhavam. Roger, histérico, disse que mais uma vez se decepcionava, que as mulheres brasileiras não eram confiáveis (ah, meu Deus, esta mania de generalizar tudo). De nada adiantou afirmar que tudo não passara de uma febre muito alta por causa da diferença de temperatura, o homem não se convenceu, e ainda reclamou que precisava voltar de novo ao Brasil para arranjar uma substituta, e que melhor teria sido fazer um show com música e bailarinas iugoslavas, que eram muito mais bonitas e mais responsáveis.
Maria, embora ainda jovem, não tinha nada de boba - principalmente depois que seu amante árabe lhe disse que na Suíça as leis trabalhistas são muito severas, e ela podia alegar que estava sendo usada para trabalho escravo, já que a boate ficava com grande parte do seu salário.
Voltou ao escritório de Roger, desta vez falando um francês razoável, que incluía em seu vocabulário a palavra "advogado". Saiu dali com alguns xingamentos, e cinco mil dólares de indenização - um dinheiro com que jamais havia sonhado, tudo por caus a daquela palavra mágica, "advogado". Agora podia namorar livremente o árabe, comprar alguns presentes, tirar umas fotos na neve, e voltar para casa com a vitória tão sonhada.
A primeira coisa que fez foi telefonar para uma vizinha da mãe e dizer que estava feliz, tinha uma linda carreira pela frente e ninguém em sua casa precisava ficar preocupado. Em seguida, como tinha um prazo para deixar o quarto de pensão que Roger lhe havia alugado, faltava apenas ir até o árabe; fazer juras de amor eterno, converter-se à sua religião, casar-se com ele - mesmo sendo obrigada a usar um daqueles lenços estranhos na cabeça; afinal de contas, todos ali sabiam que os árabes eram muito ricos, e isso bastava.
Mas o árabe, àquela altura, já estava longe - possivelmente na Arábia, um país que Maria não conhecia - e no fundo ela deu graças à Virgem Maria, porque não fora obrigada a trair sua religião. Agora, já falando francês o suficiente, com dinheiro para a passagem de volta, carteira de trabalho que a classificava como "dançarina de samba", um visto de permanência que ainda tinha validade, e sabendo que em último caso podia casar-se com um comerciante de tecidos, Maria resolveu fazer o que sabia que era capaz: ganhar dinheiro com sua beleza.
Ainda no Brasil, lera um livro sobre um pastor que, na busca de seu tesouro, encontra-se com várias dificuldades, e estas dificuldades o ajudam a conseguir o que deseja; era exatamente esse o seu caso. Tinha agora plena consciência de que fora despedida para encontrar-se com o seu verdadeiro destino - modelo e manequim.
Alugou um pequeno quarto (que não tinha televisão, pois era preciso economizar o máximo, até que conseguisse realmente ganhar muito dinheiro), e no dia seguinte começou a visitar agências. Em todas soube que precisava deixar fotos profissionais, mas, afinal de contas, era um investimento em sua carreira -todo sonho custa caro. Gastou uma considerável parte do dinheiro com um excelente fotógrafo, que conversava pouco e exigia muito: tinha um gigantesco guarda-roupa no seu estúdio,
e ela posou com vestidos sóbrios, extravagantes, e até mesmo com um biquíni do qual seu único conhecido no Rio de janeiro, intérprete/segurança e ex-empresário Maílson, iria morrer de orgulho. Pediu uma série de cópias extras, escreveu uma carta dizendo como estava feliz na Suíça, e enviou-a para a sua família. Iam achar que estava rica, com um guarda-roupa invejável, e que se havia transformado na filha mais ilustre de sua pequena cidade. Se tudo desse certo como pensava (já havia lido muitos livros de "pensamento positivo" e não tinha a menor dúvida de sua vitória), seria recebida com banda de música na volta, e daria um jeito de convencer o prefeito a inaugurar uma praça com o seu nome.
Comprou um telefone móvel, daqueles que utilizam cartão pré-pago (já que não tinha domicílio fixo) e, nos dias que se seguiram, ficou aguardando as chamadas para o trabalho.
Comia em restaurantes chineses (os mais baratos) e, para passar o tempo, estudava como uma louca.
Mas o tempo custava a passar, e o telefone não tocava. Para sua surpresa, ninguém mexia com ela quando passeava à beira do lago, exceto alguns traficantes de drogas que ficavam sempre no mesmo lugar, debaixo de uma das pontes que uniam o belo jardim antigo à parte mais nova da cidade. Começou a duvidar de sua beleza, até que uma das ex-companheiras de trabalho, com quem se encontrara por acaso em um café, disse que a culpa não era dela, mas dos suíços, que não gostam de incomodar ninguém, e dos estrangeiros, que têm medo de serem presos por "assédio sexual" - algo que tinham inventado para fazer as mulheres de todo o mundo se sentirem péssimas.
Do diário de Maria, numa noite em que não tinha coragem de sair, de viver, de continuar esperando pelo telefonema que não vinha:
Hoje passei diante de um parque de diversões. Como não posso ficar gastando dinheiro à toa, achei melhor observar as pessoas. Fiquei muito tempo parada diante da montanha-russa: via que a maioria das pessoas entrava ali em busca de emoção, mas quando começavam a andar, morriam de medo e pediam para que parassem os carros.
O que elas querem? Se escolheram a aventura, não deviam estar preparadas para ir até o final? Ou acham que seria mais inteligente não passar por estes sobe-e-desce, e ficar o tempo todo em um carrossel, girando no mesmo lugar?