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— Eu não vou viver para sempre — dizia a mãe de Rosie, fungando de um jeito que implicava que tinha toda a intenção de viver para sempre, ficando cada vez mais difícil, mais magra e mais pétrea à medida que o tempo passava, comendo cada vez menos até ser capaz de viver à base de nada além de ar, saliva e frutas de cera.

Rosie, ao sair do aeroporto de Heathrow para levar Fat Charlie para casa, decidiu que era melhor mudarem de assunto. Então disse:

— Não tem água lá no meu apartamento. O prédio todo está sem água.

— O que houve?

— A Sra. Klinger, no andar de baixo. Ela disse que tem alguma coisa vazando.

— Talvez a própria Sra. Klinger.

— Charlie!. Então... eu estava pensando. Será que eu poderia tomar banho na sua casa hoje?

— Quer que eu ensaboe você?

— Charlie.

— Claro que pode. Sem problemas.

Rosie ficou olhando para a traseira do carro da frente. Ela tirou a mão do câmbio e apertou a enorme mão de Fat Charlie.

— A gente vai se casar logo, logo.

— Eu sei.

— Bom, o que eu quero dizer é que... teremos bastante tempo pra isso, não é?

— Bastante tempo.

— Sabe o que minha mãe falou pra mim um dia?

— Humm— Ela fez uma defesa da morte por enforcamento?

— Não. Disse que, se um casal recém-casado colocar uma moeda dentro de um pote todas as vezes em que fizer amor no primeiro ano e tirar uma todas as vezes que fizer amor nos anos seguintes, o pote nunca ficará vazio.

— E isso quer dizer que...?

— Bom. E interessante, não acha? Vou chegar à sua casa às oito, acompanhada do meu patinho de borracha. Como estão as suas toalhas?

— Ahm...

— Eu levo minha toalha então.

Fat Charlie não acreditava que seria o fim do mundo se eles, uma vez ou outra, colocassem uma moeda no pote antes de trocar as alianças e cortar o bolo de casamento, mas Rosie tinha suas próprias opiniões a respeito, e o assunto estava encerrado. O pote permanecia totalmente vazio.

“O problema”, pensou Fat Charlie assim que entrou em casa, “de chegar a Londres após uma breve viagem a outro país é que, se você chegar pela manhã, não há muita coisa para fazer no resto do dia.”

Fat Charlie era um homem que preferia sempre trabalhar. Ele considerava o ato de deitar-se num sofá e assistir a Countdownl (Tradicional game show da TV britânica, é uma espécie de instituição local. Exibido desde 1982, vai ao ar diariamente à tarde e já ultrapassou a marca de 4 mil programas) uma lembrança da época em que fizera parte do grupo dos desempregados. Decidiu que a coisa mais sensata a fazer seria ir um dia mais cedo para o trabalho. Nos escritórios da Agência Grahame Coats, em Aldwych, no quinto e último andar, ele se sentia parte do fluxo do mundo. Teria conversas interessantes com os colegas na sala de chá. Todo o espetáculo da vida se desdobraria perante seus olhos, majestoso em sua complexidade, implacável e inflexível em seu funcionamento. As pessoas iam gostar de vê-lo.

— Você só volta ao trabalho amanhã — disse Annie, a recepcionista, quando Fat Charlie entrou. — Eu disse às pessoas que você só voltaria amanhã. Quando elas ligaram.

Ela não parecia feliz com a situação.

— Não consegui ficar longe — observou Fat Charlie.

— Claro que não — respondeu ela com certo desdém. — Você precisa retornar a ligação de Maeve Livingstone. Ela liga todos os dias.

— Pensei que ela fosse assunto do Grahame Coats.

— Bom, ele quer que você fale com ela. Só um instante.

Ela atendeu ao telefone.

Era sempre assim que se referiam ao chefe, com os dois nomes: “Grahame Coats”. Não “senhor Coats”. Nunca apenas Grahame. Afinal de contas, era a agência dele, e representava as pessoas. Ficava com uma porcentagem do que elas ganhavam por ter exercido o direito de representá-las.

Fat Charlie foi até seu escritório, uma salinha minúscula que partilhava com um armário de arquivo. Havia um post-it amarelo na tela de seu computador com a mensagem: “Venha até minha sala. GC”. Ele atravessou o corredor até o escritório enorme de Grahame Coats. A porta estava fechada. Ele bateu e, sem saber ao certo se ouviu alguma resposta ou não, abriu a porta e enfiou a cabeça.

A sala estava vazia. Não havia ninguém lá.

— Ahm... oi? — arriscou Fat Charlie, não muito alto. Ninguém respondeu. Havia, no entanto, uma certa desordem na sala: a estante de livros estava perto da parede formando um ângulo e, do espaço por trás dela, podia-se ouvir o som de batidas, como se fossem de um martelo.

Ele fechou a porta do jeito mais suave possível e voltou para sua mesa.

O telefone tocou. Ele atendeu.

— Aqui é Grahame Coats. Venha me ver.

Dessa vez, Grahame Coats estava sentado à mesa, e a estante de livros, alinhada à parede. Ele não convidou Fat Charlie para se sentar. Era um homem branco de meia-idade, com cabelo bem claro, já ficando careca. Se você visse Grahame Coats e imediatamente pensasse num furão albino vestindo um terno caro, não seria a primeira pessoa a ter essa impressão.

— Vejo que está de volta — disse Grahame Coats. — Por assim dizer.

— Sim — respondeu Fat Charlie. Como Grahame Coats não parecia particularmente feliz com a volta antecipada de Fat Charlie, acrescentou: — Me desculpe.

Grahame Coats pressionou os dois lábios com os dedos, olhou para um papel sobre a mesa e voltou os olhos novamente para Fat Charlie.

— Deram a entender que você não estaria de volta até amanhã. Meio cedo para voltar, não?

— Nós., quer dizer, eu cheguei esta manhã. Da Flórida. Achei que fosse bom vir para cá. Muita coisa a ser feita. Para mostrar boa vontade. Se estiver tudo bem.

— Absolutotalmente — concordou Grahame Coats. A palavra, praticamente um acidente automobilístico entre “absolutamente” e “totalmente”, sempre fazia Fat Charlie se contorcer. — Como quiser.

— Foi o funeral do meu pai.

Grahame mexeu o pescoço feito um furão.

— Ainda assim, isso será descontado de um dos seus dias de licença.

— Certo.

— Maeve Livingstone. Viúva desconsolada de Morris. Precisa ser consolada. Palavras bonitas, promessas gentis. Roma não foi construída num só dia. Todo o processo de fazer o inventário dos bens de Morris Livingstone e passar o dinheiro para ela continua a todo vapor. Ela me liga praticamente todo dia só para ser consolada. Então eu passo a tarefa a você.

— Certo. Então... ahm. Os que trabalham nunca descansam.

— Quem trabalha sempre colhe — respondeu Grahame Coats, mexendo o dedo.

— Mãos à obra? — sugeriu Fat Charlie.

— Arregaçar as mangas — disse Grahame Coats. — Bom, foi ótimo conversar com você. Mas ambos temos muito trabalho a fazer.

Havia alguma coisa na presença de Grahame Coats que sempre fazia Fat Charlie: a) falar usando clichês e b) ter devaneios imaginando enormes helicópteros negros primeiro atirando e depois despejando baldes de napalm nos escritórios da Agência Grahame Coats. Fat Charlie não se encontrava na agência quando imaginava a cena. Estaria sentado numa cadeira do lado de fora de um pequeno café, no outro lado de Aldwych, tomando um café cremoso e de vez em quando vibrando de alegria ao ver a precisão com que um helicóptero jogava o balde de napalm.

Com isso você pode supor que não há nada para saber quanto ao trabalho de Fat Charlie, com exceção de que se sentia infeliz — e com razão. Fat Charlie tinha facilidade com números, o que o mantinha em seu emprego, e uma falta de jeito e uma timidez que o impediam de dizer às pessoas o que fazia de fato, e o quanto fazia. Ao seu redor, Fat Charlie via pessoas ascendendo implacavelmente aos níveis da incompetência, enquanto ele permanecia com o nível de aplicação com que havia entrado, desempenhando tarefas essenciais até o dia em que voltava ao grupo dos desempregados e começava a ver televisão novamente. Nunca ficou sem trabalho durante muito tempo, mas isso tinha acontecido vezes demais na última década para que Fat Charlie se sentisse totalmente seguro em qualquer emprego. Mas ele não levava as coisas para o lado pessoal.