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E então a campainha tocou.

Fat Charlie colocou seu robe e desceu as escadas.

Nunca havia usado a corrente de segurança antes de abrir a porta, jamais em toda a vida, mas antes de girar a maçaneta colocou a corrente no lugar e só abriu uma fresta de uns 15 centímetros.

— Bom dia — cumprimentou, inseguro.

O sorriso que aparecia na fresta da porta seria capaz de iluminar uma cidade inteira.

— Você me chamou e eu vim — disse o estranho. — E então? Não vai abrir a porta para mim, Fat Charlie?

— Quem é você?

Enquanto dizia a frase, se deu conta de onde vira aquele homem antes: no funeral de sua mãe, na pequena capela do crematório. Foi a última vez que vira aquele sorriso. E sabia qual era a resposta para sua pergunta mesmo antes de obter uma resposta.

— Sou o seu irmão — informou o homem.

Fat Charlie fechou a porta. Tirou a corrente e escancarou a porta. O homem ainda estava ali.

Fat Charlie não tinha muita certeza sobre como cumprimentar um irmão potencialmente imaginário, em cuja existência tinha se recusado a acreditar. Eles ficaram ali, de pé, um de um lado da porta, o outro do outro, até que seu irmão disse:

— Você pode me chamar de Spider. Não vai me convidar para entrar?

— Sim. Vou. Claro. Por favor. Entre.

Fat Charlie levou o homem para o andar de cima.

Coisas impossíveis acontecem. Quando acontecem, a maioria das pessoas simplesmente dá um jeito de lidar com elas. Hoje, como em todos os outros dias, mais ou menos 5 mil pessoas sobre a face da Terra experimentarão uma dessas coisas que têm uma chance em um milhão de acontecer. Nenhuma delas se recusará a acreditar no que seus sentidos lhes dizem. A maioria dirá o equivalente à frase (em sua própria língua): “Que mundo estranho, não é?”; e seguirá adiante. Embora uma parte de Fat Charlie tentasse imaginar uma explicação lógica, sensata e racional para o que estava acontecendo, a maior parte dele simplesmente se acostumava com a idéia de que um irmão que ele não conhecia estava atrás dele subindo a escada para o andar de cima. Chegaram à cozinha e lá ficaram.

— Aceita um chá?

— Você tem café?

— Só instantâneo, infelizmente.

— Tudo bem.

Fat Charlie pôs a chaleira no fogo.

— Você vem de longe então? — perguntou.

— De Los Angeles.

— Como foi o vôo?

O homem sentou-se à mesa da cozinha. Deu de ombros. Era o tipo de dar de ombros que poderia significar qualquer coisa.

— Ahm. Você planeja ficar muito tempo?

— Não pensei muito nisso ainda.

O homem — Spider — examinava a cozinha de Fat Charlie como se nunca tivesse visto uma cozinha na vida.

— Como você toma o seu café?

— Negro como a noite, doce como o pecado.

Fat Charlie colocou a caneca diante do homem e ofereceu-lhe o açucareiro.

— Sirva-se à vontade.

Enquanto Spider colocava colher após colher de açúcar em seu café, Fat Charlie ficou sentado do lado oposto da mesa, observando-o.

Havia certa semelhança entre os dois homens. Isso era indiscutível, embora não explicasse a intensa sensação de familiaridade que Fat Charlie sentia ao ver Spider. Seu irmão tinha a aparência que ele gostava de imaginar que teria, se não visse no espelho do banheiro com monótona regularidade um sujeito com uma aparência que deixava um tanto a desejar. Spider era mais alto, mais magro, mais interessante. Usava uma jaqueta de couro preta e vermelha e calças de couro pretas, e parecia sentir-se confortável nelas. Fat Charlie tentou se lembrar se o sujeito descolado estava vestido assim no sonho. Havia algo sobrenatural nele: simplesmente estar do outro lado da mesa, diante desse homem, fazia Fat Charlie se sentir esquisito, desajeitado e um tanto tolo. Não eram as roupas que Spider usava, e sim saber que se ele, Fat Charlie, as vestisse, pareceria alguém usando um disfarce não convincente. Não era o sorriso de Spider — um sorriso casual, alegre —, e sim a fria e incontornável certeza de que ele, Fat Charlie, poderia treinar sorrir na frente do espelho até o fim dos tempos que nunca conseguiria sorrir de um jeito tão encantador, tão confiante, tão espetacularmente afável.

— Você foi à cremação da mamãe — disse Fat Charlie.

— Eu pensei em falar com você depois do velório. Mas não sabia se era uma boa idéia.

— Teria sido uma boa idéia. — Fat Charlie se lembrou de alguma coisa. — Achei que você iria também ao funeral do nosso pai.

— Quê?

— O funeral dele. Na Flórida. Uns dois dias atrás.

Spider balançou a cabeça.

— Ele não está morto. Tenho certeza de que eu saberia caso ele estivesse.

— Ele morreu. Eu o enterrei. Quer dizer, enchi a cova de terra. Pergunte à Sra. Higgler.

— Como ele morreu?

— Ataque do coração.

— Isso não quer dizer nada. Só significa que ele morreu.

— Bom, pois é isso. Ele morreu.

Spider parou de sorrir. Agora olhava fixamente para seu café, como se pensasse que poderia achar uma resposta ali.

— Vou precisar verificar isso. Não é que eu não acredite em você. Mas quando se trata do próprio pai... Mesmo quando o seu pai é o meu pai. — Ele fez uma careta. Fat Charlie sabia o que aquela careta significava. Ele mesmo a fazia, internamente, diversas vezes, quando alguém falava sobre seu pai.

— Ela ainda mora no mesmo lugar? Na casa ao lado da nossa casa antiga? — perguntou Spider.

— A Sra. Higgler? Sim. Ainda está lá.

— Você por acaso teria alguma foto de lá? Um retrato?

— Eu trouxe uma caixa cheia.

Fat Charlie ainda não havia aberto a enorme caixa de papelão. Estava no hall de entrada. Levou a caixa para a cozinha e a colocou sobre a mesa. Pegou uma faca de cozinha e cortou a fita adesiva. Spider colocou as mãos de dedos finos dentro da caixa, mexendo nas fotografias como se fossem cartas de baralho, até que puxou uma foto de sua mãe e da Sra. Higgler sentadas na varanda da casa da antiga vizinha. Uma foto de 25 anos antes.

— Essa varanda ainda existe?

Fat Charlie tentou se lembrar.

— Acho que sim.

Mais tarde, ele não conseguia lembrar se a foto cresceu ou se Spider diminuiu. Poderia jurar que nenhuma dessas coisas aconteceu realmente. Apesar disso, era um fato indiscutível que Spider entrou na fotografia, cuja superfície brilhava e fazia ondas como se fosse líquida e acabou por engoli-lo.

Fat Charlie esfregou os olhos. Estava sozinho em sua cozinha, às seis da manhã. Havia uma caixa cheia de fotografias e papéis sobre a mesa, e uma caneca vazia, que ele colocou dentro da pia.

Caminhou pelo corredor até seu quarto, deitou-se em sua cama e dormiu até o despertador acordá-lo, às 7h15.

4

Cujo desfecho é uma noite com vinho, mulheres e música

Fat Charlie acordou. Memórias de um sonho em que encontrava um irmão que era astro de cinema se misturavam com as de um sonho em que o presidente Taft fazia uma visita e virava seu hóspede, trazendo com ele todos os personagens do desenho animado do Tom e Jerry. Tomou uma chuveirada e pegou o metrô para o trabalho.

Durante todo o expediente, algo em sua mente o incomodava, mas ele não sabia o que era. Colocava coisas em lugares errados, esquecia de outras. Em certo ponto, começou a cantar em sua mesa, não porque estivesse feliz, mas porque se esquecera de não cantar. Só se deu conta do que fazia quando o próprio Grahame Coats colocou a cabeça dentro do escritório para repreendê-lo.

— Nada de rádios, walkmans, MP3 players ou objetos musicais desse tipo aqui no escritório — disse Grahame Coats, com seu olhar fixo e raivoso de furão. — Eles remetem a uma atitude preguiçosa, considerada abominável no mundo dos negócios.