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— Não era o rádio — admitiu Fat Charlie, com as orelhas ardendo.

— Não? Então poderia me fazer o obséquio de dizer o que era?

— Era eu.

— Você?

— Sim, eu estava cantando. Desculpe..

— Eu poderia jurar que era um rádio. Mas estava errado. Deus do céu. Bom, com uma gama de talentos tão grande à sua disposição, com habilidades tão fantásticas, talvez você deva nos deixar para subir no palco, entreter as multidões, talvez fazer um show mambembe, em vez de entulhar de coisas uma mesa num escritório onde outras pessoas estão tentando trabalhar. Certo? Aqui é um lugar que administra a carreira de outras pessoas.

— Não. Eu não quero ir embora. Fiz isso sem pensar.

— Então — começou Grahame Coats — você deve aprender a conter a sua vontade de cantar. Deixe para cantar na banheira, no chuveiro ou talvez na arquibancada, quando estiver torcendo pro seu time. Eu mesmo torço pelo Crystal Palace. Ou então você vai ter que procurar emprego em outro lugar.

Fat Charlie sorriu, e então percebeu que sorrir não era, de forma nenhuma, o que queria fazer. Ele fez uma cara séria, mas Grahame Coats já tinha saído do escritório. Fat Charlie soltou um xingamento inaudível, cruzou os braços sobre a mesa e abaixou a cabeça.

— Era você quem estava cantando?

A pergunta vinha de uma das novas funcionárias do Departamento de Relações Artísticas. Fat Charlie nunca conseguia decorar o nome delas. Quando ele finalmente aprendia, elas já tinham ido embora.

— Receio que sim.

— O que você estava cantando? Era uma música bonita.

Fat Charlie deu-se conta de que não sabia. Disse:

— Não sei ao certo. Não estava prestando atenção.

Ela riu com a resposta, mas de jeito tímido. E acrescentou:

— Sabe, ele tem razão. Você devia gravar um disco, e não perder seu tempo aqui.

Fat Charlie não sabia o que dizer. Com as bochechas ardendo, começou a riscar números, escrever notas e pegar post-its já escritos e colocá-los na tela até ter certeza de que a moça tinha ido embora.

Maeve Livingstone telefonou: será que Fat Charlie poderia encarecidamente pedir a Grahame Coats para telefonar para seu gerente do banco? Ele disse que faria o possível. Ela disse com firmeza que ele deveria fazer o possível para fazer o possível.

Rosie ligou para ele de seu celular, às quatro da tarde, para avisá-lo de que a água em seu prédio havia voltado e para dizer que, olha só que boa novidade, sua mãe decidira interessar-se pelo iminente casamento e convidara Rosie para ir até lá à noite discutir o assunto.

— Bom — disse Fat Charlie —, se for ela quem vai preparar o jantar, vai economizar uma fortuna em comida.

— Isso não é uma coisa legal de dizer. Ligo pra você à noite para falar como foi.

Fat Charlie disse a ela que a amava e desligou o telefone. Alguém o observava. Ele se virou. Era Grahame Coats.

— Aquele que plantar chamadas telefônicas pessoais durante o período de trabalho colherá tempestades. Sabe quem disse isso?

— Você?

— Certamente fui eu — respondeu Grahame Coats. — Sim, de fato fui eu. E ninguém jamais disse algo tão verdadeiro. Considere essa a sua primeira advertência.

E então sorriu o tipo de sorriso satisfeito que fazia Fat Charlie ponderar os possíveis resultados de enfiar um murro na barriga de Grahame Coats. Decidiu que seria uma difícil decisão entre ser despedido e ser processado por agressão. “De qualquer modo”, pensou, “seria algo bonito de ver...”

Fat Charlie não era, por natureza, um homem violento. Ainda assim, podia sonhar. Seus devaneios costumavam ser modestos, mas davam uma sensação de conforto. Imaginava ter bastante dinheiro para comer em bons restaurantes sempre que quisesse.

Ter um emprego em que ninguém lhe diria o que fazer. Poder cantar sem se sentir embaraçado, em um lugar em que nunca haveria ninguém por perto para ouvi-lo.

Naquela tarde no entanto seus devaneios assumiam uma forma diferente: ele podia voar, balas ricocheteavam em seu tórax forte enquanto descia pelo céu e resgatava Rosie de bandidos que a seqüestravam. Ela o abraçava bem forte enquanto voavam na direção do pôr do sol, na direção de sua Fortaleza Fantástica, onde ela ficaria tão grata que tomaria entusiasticamente a decisão de não ligar mais para essa coisa do vamos-esperar-até-depois-do-casamento e veria se eles conseguiriam encher o pote de moedas o mais rápido possíveL.

O devaneio aliviava todo o estresse que havia na Agência Grahame Coats, a exigência de ter que avisar às pessoas que seus cheques já foram enviados, de exigir o dinheiro que deviam à agência.

Às seis da tarde, Fat Charlie desligou seu computador e desceu os cinco andares do prédio de escada até chegar a rua. Não havia chovido. Lá em cima, as estrelas pairavam e piscavam: eram como o coro da noite na cidade. Todos na calçada andavam rápido. A maioria deles, como Fat Charlie, subia a Kingsway para pegar o metrô na estação Holborn. Andavam cabisbaixos e pareciam querer muito chegar em casa.

No entanto havia uma pessoa na calçada que não estava indo a lugar nenhum. Ele estava ali, de pé, encarando Fat Charlie e os outros transeuntes, e o colarinho de sua jaqueta de couro balançava ao vento. Não estava sorrindo.

Fat Charlie o viu já do final da rua. À medida que caminhava na direção do homem, tudo se tornava irreal. O dia se desfez em sua mente, e ele se deu conta do que esteve tentando se lembrar durante todo aquele tempo.

— Oi, Spider — cumprimentou Fat Charlie ao se aproximar dele.

Spider parecia ter uma tempestade dentro de si. Talvez estivesse prestes a chorar. Fat Charlie não saberia dizer. Havia emoção demais em seu rosto, tanto que as pessoas na rua evitavam olhar para ele, envergonhadas.

— Eu fui até lá — disse. Sua voz não tinha força. — Eu vi a Sra. Higgler. Ela me levou até o túmulo. Meu pai morreu, e eu não sabia.

— Ele era meu pai também, Spider. — Ele ficou se perguntando como fora capaz de esquecer Spider, como pudera achar que era apenas um sonho.

— É verdade.

O céu do fim do dia estava cheio de pequenas estrelas. Elas deslizavam e saltavam de telhado em telhado. Spider estremeceu e ficou mais ereto, como se tivesse tomado uma decisão.

— Você tem toda a razão. Nós temos que fazer isso juntos.

— Exatamente — concordou Fat Charlie. Depois perguntou: — Fazer o quê?

Mas Spider já tinha chamado um táxi.

— Somos homens com problemas — disse Spider para o mundo. — Nosso pai morreu. Nosso coração está pesado. A tristeza pesa sobre nós como o pólen pesa numa epidemia de alergia. A escuridão é o nosso fardo, e a infelicidade, nossa única companhia.

— Certo, senhores — interrompeu o motorista de táxi, animado. — Para onde vão?

— Para um lugar onde possamos encontrar os três remédios para a cura da alma — respondeu Spider.

— Talvez a gente devesse ligar para o restaurante indiano e pedir algo com curry— sugeriu Fat Charlie.

— Existem três coisas, e três coisas apenas, que podem tirar a dor da mortalidade e suavizar as tragédias da vida. E essas coisas são vinho, mulheres e música.

— Curry também é legal — acrescentou Fat Charlie, mas ninguém prestava atenção nele.

— Em que ordem? — perguntou o motorista.

— Vinho primeiro — anunciou Spider. — Um rio, um lago, um oceano de vinho.

— Eu tenho uma sensação bem ruim quanto a isso — comentou Fat Charlie, prestativo.

Spider assentiu com a cabeça.

— Sensação ruim. Sim. Ambos estamos nos sentindo mal. Esta noite partilharemos nossas sensações ruins e encararemos nossos problemas. Ficaremos de luto. Secaremos o poço amargo da mortalidade. A dor, quando partilhada, meu irmão, não é dobrada, e sim dividida. Nenhum homem é uma ilha.

— Nunca perguntes por quem os sinos dobram — citou o motorista. — Pois eles dobram por ti.