— Opa! — disse Spider — Você arranjou um koan matador, amigo.
— Obrigado — disse o motorista.
— E é assim que tudo termina mesmo. O senhor tem um ar de filósofo. Meu nome é Spider. Este é o meu irmão, Fat Charlie.
— Charles — corrigiu Fat Charlie.
— Steve — apresentou-se o motorista. — Steve Burridge.
— Senhor Burridge, o senhor gostaria de ser nosso motorista particular por esta noite?
Steve Burridge explicou que estava no fim do expediente e levaria o táxi para casa. A Sra. Burridge e os pequenos Burridges o esperavam para o jantar.
— Você ouviu isso? — comentou Spider. — Um homem de família. Olha, o meu irmão e eu somos tudo o que restou da família. E essa é a primeira vez que nos encontramos.
— Parece uma história e tanto. Vocês brigaram?
— Não, nada disso. Ele simplesmente não sabia que tinha um irmão — respondeu Spider.
— E você sabia? — perguntou Fat Charlie.
— Talvez eu soubesse — respondeu Spider. — Mas às vezes a gente esquece essas coisas.
O motorista encostou o táxi na calçada.
— Onde estamos? — perguntou Fat Charlie. Eles não tinham ido muito longe. Fat Charlie achou que estivessem só um pouco além da Fleet Street.
— Onde ele pode conseguir o que queria — respondeu o motorista. — Vinho.
Spider saiu do táxi e observou a fachada de um velho bar, feita de carvalho sujo e vidros embaçados.
— Perfeito. Pague o homem, irmão.
Fat Charlie pagou o táxi. Eles entraram. Desceram uma escada de madeira até chegar a um porão onde advogados rubicundos bebiam lado a lado com pálidos administradores de fundos do mercado financeiro. Havia serragem no chão e uma lista de vinhos escrita com giz, de modo ilegível, num quadro negro atrás do balcão.
— O que você vai beber? — perguntou Spider.
— Só uma taça de vinho tinto da casa, por favor — respondeu Fat Charlie.
Spider olhou para ele com ar sério e disse:
— Nós somos os últimos herdeiros da linhagem Anansi. Não vamos beber à memória de nosso pai com vinho tinto da casa.
— Ahm. Certo. Bom, então vou tomar o que você tomar.
Spider foi até o bar, passando pelo monte de pessoas como se elas não estivessem lá. Depois de vários minutos, voltou carregando duas taças, um saca-rolhas e uma garrafa de vinho extremamente empoeirada. Abriu a garrafa com uma facilidade que impressionou profundamente Fat Charlie, que sempre deixava cair fragmentos de cortiça dentro da garrafa. Spider serviu o vinho, tão escuro que quase chegava a ser negro. Encheu as duas taças e colocou uma delas diante de Fat Charlie.
— Um brinde. À memória do nosso pai.
— Ao nosso pai — respondeu Fat Charlie. Ele tocou sua taça na taça de Spider (milagrosamente sem derramar nenhuma gota) e provou do seu vinho. Era bastante amargo, com um toque de ervas, salgado.
— O que é isso?
— Vinho funerário, o tipo que se bebe em homenagem aos deuses. Não o produzem mais há muito tempo. E temperado com aloés e alecrim, e com as lágrimas de virgens infelizes no amor.
— E eles vendem isso num bar na Fleet Street?
Fat Charlie pegou a garrafa, mas o rótulo estava muito apagado e empoeirado para ler.
— Nunca ouvi falar.
— São esses lugares mais antigos que têm coisas boas se você pedir — respondeu Spider. — Ou pelo menos eu acho que têm.
Fat Charlie tomou outro gole de seu vinho. Era forte e tinha um gosto acre.
— Não é um vinho de degustação — disse Spider. — É um vinho para lamentar a morte de alguém. Você bebe de uma vez. Assim. — Tomou um gole grande e fez uma careta. — Assim ele fica com gosto melhor também.
Fat Charlie hesitou um instante, e então deu um grande gole naquele vinho estranho. Conseguia imaginar que podia sentir o gosto de aloés e alecrim. Ficou pensando se o gosto salgado vinha mesmo de lágrimas.
— Eles põem alecrim para a auxiliar a memória — observou Spider, e começou a encher as taças até a borda. Fat Charlie tentou explicar que não estava com muita vontade de tomar vinho naquela noite e que tinha que trabalhar no dia seguinte, mas Spider o interrompeu. — É a sua vez de fazer um brinde.
— Ahm. Certo. À nossa mãe.
Beberam à memória da mãe. Fat Charlie percebeu que começava a apreciar o gosto amargo do vinho. Sentia os olhos ardendo, e uma sensação de perda, profunda e dolorosa, apoderou-se dele. Sentiu falta de sua mãe. Sentiu saudades da infância. Até sentiu saudades do pai. Do outro lado da mesa, Spider balançava a cabeça. Uma lágrima correu por seu rosto e caiu no vinho. Ele pegou a garrafa e serviu mais vinho para ambos.
Fat Charlie bebeu.
A tristeza apoderou-se dele enquanto bebia, enchendo sua cabeça e seu corpo com o sentimento de perda e com a dor da ausência, engolfando-o como ondas no oceano.
Suas próprias lágrimas corriam pela face, caindo no vinho. Procurou um lenço nos bolsos. Spider serviu o restante do vinho para ambos.
— Eles vendem mesmo esse vinho aqui?
— Eles tinham uma garrafa, mas não sabiam que tinham. Eles só precisavam de alguém que os lembrasse.
Fat Charlie assoou o nariz.
— Eu nunca soube que tinha um irmão.
— Eu sabia — respondeu Spider. — Eu sempre quis procurar você, mas me distraí com outras coisas. Sabe como é.
— Acho que não sei.
— As coisas me impediam.
— Que tipo de coisas?
— Coisas. Elas surgiam. E o que as coisas fazem. Elas surgem. Não é justo que eu seja obrigado a ter o controle de todas elas.
— Ora, me dê um exemplo.
Spider bebeu um pouco mais.
— Está bem. Da última vez que decidi que a gente devia se encontrar, passei dias planejando. Queria que tudo saísse perfeito. Escolhi as roupas que usaria. Depois tive que decidir o que dizer a você quando nos encontrássemos. O encontro de dois irmãos costuma ser assunto de histórias épicas, certo? Decidi que a única maneira de tratar o assunto com a seriedade que ele exigia seria com versos. Mas que tipo de versos? Devo cantar como um rap? Devo declamá-los? Quer dizer, claro que não ia cumprimentar você com uma riminha boba. Então. Precisava ser algo sombrio, poderoso, ritmado, épico. E então consegui pensar numa coisa. O primeiro verso, perfeito: O sangue clama pelo sangue como sereias clamam no escuro. Ele diz muita coisa. Eu sabia que conseguiria colocar tudo em versos. As pessoas morrendo em vielas, o suor, os pesadelos, o poder invencível dos espíritos livres. Tudo caberia ali. Então eu tinha que inventar um segundo verso, e a coisa toda ruiu. O melhor que eu consegui foi Pã-parã-papã-parã-papã quase caiu duro.
Fat Charlie piscou.
— Mas quem é Pá-parã-papã-parã-papã?
— Não é ninguém. Só está aí para mostrar aonde vão as palavras. Mas eu nunca fui além disso, e não podia aparecer apenas com um único verso inicial, uns parã-pãs e três palavras de um poema épico, certo? Seria um acinte.
— É...
— Pois é. Então eu tirei uma semana de folga e fui pro Havaí.
Como eu disse, as coisas apareciam.
Fat Charlie bebeu mais vinho. Estava começando a gostar. Às vezes os gostos mais fortes caem bem com emoções fortes, e essa era uma dessas ocasiões.
— Mas nem sempre havia um segundo verso de poema épico para impedir você — observou Fat Charlie.
Spider colocou sua mão delgada sobre a grande mão de Fat Charlie.
— Chega de falar sobre mim. Vamos falar de você.
— Não há muito o que dizer. — Contou ao irmão sobre sua vida. Sobre Rosie e a mãe dela, sobre Grahame Coats e a Agência Grahame Coats, e seu irmão assentia com a cabeça. Agora que Fat Charlie colocava tudo em palavras, não parecia uma vida muito excitante. — Mesmo assim — complementou com ar filosófico —, existem aquelas pessoas que aparecem nas páginas de fofocas dos jornais. E elas sempre dizem o quanto sua vida é chata, vazia e sem sentido.
Segurou a garrafa de vinho sobre sua taça, na esperança de que houvesse pelo menos o suficiente para mais um gole, mas não havia nem uma gota. A garrafa estava vazia. Havia durado mais do que se poderia esperar de uma garrafa, mas agora não havia mais nada.