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Fat Charlie deu de ombros de uma maneira, assim esperava, capaz de indicar que dentro dele havia um nível de ruindade bastante alto, ainda não descoberto.

Spider caminhou até o palco como se um holofote o seguisse.

— Aposto que ele vai cantar bem — disse a vodca-com-laranja. — Disseram que você é irmão dele, é verdade?

— Não — murmurou Fat Charlie, de um jeito meio rude. — Eu disse que ele era meu irmão.

Spider começou a cantar. A música era “Under the Boardwalk”.

Não teria acontecido se Fat Charlie não gostasse tanto da música. Quando tinha 13 anos, ele acreditava que “Under the Boardwalk” era a melhor música do mundo (na época em que tinha 14 anos e já sabia mais do mundo, a melhor música passou a ser “No Woman No Cry”, do Bob Marley). Agora Spider cantava a sua música, e cantava muito bem. No tom certo, como se as palavras fizessem sentido para ele. As pessoas pararam de beber, pararam de conversar e ficaram olhando para ele, ouvindo.

Ao final da apresentação, as pessoas vibraram. Se estivessem usando chapéus, teriam jogado para cima.

— Agora entendo por que você não quer cantar também — observou a vodca-com-laranja para Fat Charlie. — Quer dizer, não dá pra competir, né?

— Bom... — começou Fat Charlie.

— Quer dizer — emendou ela com um sorriso —, dá para ver quem herdou todo o talento da família.

E inclinou a cabeça enquanto dizia isso. Depois mexeu o queixo, fazendo uma cara piedosa. Foi essa mexida no queixo que pôs tudo a perder.

Fat Charlie caminhou até o palco, colocando um pé na frente do outro numa impressionante demonstração de destreza física. Ele suava.

Os minutos seguintes passaram como uma névoa. Ele falou com o DJ, escolheu uma música da lista — “Unforgettable” —, esperou o que pareceu ser uma pequena eternidade, e finalmente puseram um microfone em suas mãos.

Sua boca estava seca. Seu coração batia forte.

Na tela, apareceu a primeira palavra: Unforgettable...

Na verdade, Fat Charlie sabia cantar. Sua voz tinha alcance, força, expressão. Quando cantava, todo o seu corpo virava um instrumento.

A música começou.

Em sua cabeça, Fat Charlie estava pronto para abrir a boca e cantar “Unforgettable”. Cantaria para seu pai morto, para seu irmão, para a noite, para dizer-lhes que eram inesquecíveis.

Só que não conseguia. Havia pessoas olhando para ele. Mais ou menos umas 20 pessoas no andar de cima de um pub. Muitas eram mulheres. Diante de uma platéia, Fat Charlie não conseguia sequer abrir a boca.

Ele podia ouvir a música, mas ficou parado. Sentiu-se gelado. Seus pés pareciam muito distantes de seu corpo.

Forçou-se a abrir a boca.

— Eu acho — começou a dizer claramente ao microfone, por sobre a música, com sua voz ecoando de todas as paredes — que vou passar mal.

Não foi bonita sua saída do palco.

Depois disso, tudo ficou girando.

Há lugares míticos. Eles existem, cada um à sua maneira. Alguns pairam sobre o mundo. Outros existem sob o mundo, como o esboço de uma pintura.

Há montanhas. Um lugar rochoso que fica antes dos penhascos que delimitam o fim do mundo. Nessas montanhas há cavernas, cavernas profundas que já eram habitadas bem antes de o primeiro homem caminhar sobre a Terra.

E ainda são habitadas.

5

No qual examinamos as diversas conseqüências da manhã seguinte

Fat Charlie estava com sede.

Fat Charlie estava com sede, e sua cabeça doía.

Fat Charlie estava com sede, sua cabeça latejava, tinha um gosto horrível na boca, seus olhos eram comprimidos pela cabeça, seus dentes pareciam ter os nervos expostos, seu estômago queimava, suas costas doíam de um jeito que começava nos joelhos e terminava na testa, seu cérebro parecia ter sido substituído por bolas de algodão, alfinetes e agulhas, por isso doía tanto pensar, e seus olhos não eram só comprimidos pela cabeça — ele tinha a impressão de que tinham caído durante a noite e sido recolocados no lugar com pregos. Agora percebia que qualquer coisa que fizesse mais barulho que o movimento das partículas de ar passando suavemente umas sobre as outras estava acima de seu limite de dor. Além disso, queria morrer.

Fat Charlie abriu os olhos, o que foi um erro, porque deixou a luz do dia entrar, e isso doía. Abrir os olhos informou-lhe sobre seu paradeiro (estava em sua cama, em seu quarto) e, porque olhava o relógio sobre o criado-mudo, viu que eram 1 lh30 da manhã.

“Isso”, pensou, uma palavra de cada vez, “é a pior coisa que poderia acontecer.” Estava com uma ressaca que o Deus do Velho Testamento teria mandado como praga sobre os infiéis, e tinha certeza de que da próxima vez que visse Grahame Coats seria informado de que estava demitido.

Ficou pensando se soaria convincentemente doente pelo telefone, mas percebeu que o desafio seria parecer normal.

Não conseguia lembrar como havia chegado em casa na noite anterior.

Ele ligaria para o escritório assim que conseguisse lembrar o número. Pediria desculpas — uma gripe o pegou de jeito, o deixou de cama, não havia nada que pudesse fazer...

— Olha — disse alguém na cama, ao lado dele —, acho que tem uma garrafa de água aí do lado. Pode passar pra mim?

Fat Charlie quis explicar que não havia água do lado da cama e que a água mais a mão ficava na pia do banheiro, se limpasse antes a caneca da escova de dentes. Então se deu conta de que havia diversas garrafas de água sobre o criado-mudo. Ele esticou a mão, fechou os dedos (que pareciam pertencer a outra pessoa) em volta de uma delas e, fazendo uma força que em geral as pessoas reservam para se erguer quando faltam alguns centímetros para alcançar o topo de uma montanha íngreme, rolou na cama.

Era a vodca-com-laranja.

Além disso, estava nua. Ao menos as partes do corpo dela que ele podia ver estavam nuas.

Ela pegou a água e puxou o lençol para cobrir o peito.

— Brigada. Ele pediu pra avisar, quando você acordasse, que não precisa se preocupar em ligar pro trabalho e dizer a eles que está doente. Ele já resolveu tudo.

Mas Fat Charlie não se tranqüilizou. Seus temores e preocupações não foram embora. Também, na condição em que se encontrava, só havia espaço em sua cabeça para se preocupar com uma coisa de cada vez. Nesse momento, estava preocupado em saber se conseguiria chegar ao banheiro a tempo.

— Você precisa tomar mais líquido — sugeriu a moça. — Repor os eletrólitos.

Fat Charlie conseguiu chegar ao banheiro a tempo. Depois, vendo que já estava por ali, ficou embaixo do chuveiro até o banheiro parar de girar. Escovou os dentes sem vomitar.

Quando voltou ao quarto, a vodca-com-laranja não estava mais lá. Isso foi um alívio para Fat Charlie, que começava a rezar para que ela fosse uma ilusão induzida pelo álcool, como elefantes cor-de-rosa ou a idéia pavorosa de que ele tinha resolvido cantar num palco, na noite anterior.

Não conseguia achar seu robe, por isso pôs um moletom, de modo a estar minimamente vestido para ir até a cozinha, no fim do corredor.

Seu celular tocou. Ele procurou pelo paletó, que estava no chão ao lado da cama, até achá-lo, e o abriu. Grunhiu um alô do modo mais anônimo que podia, caso fosse alguém da Agência Grahame Coats querendo saber onde estava.

— Sou eu — disse a voz de Spider. — Está tudo bem.

— Você falou para eles que eu morri?

— Melhor que isso. Falei que eu sou você.

— Mas... — Fat Charlie tentou pensar com clareza. — Mas você ão é eu.

— Ora, eu sei disso. Mas disse a eles que sou.

— Você nem se parece comigo.

— Meu irmão, você está quase me tirando do sério. Eu já resolvi o problema. Opa. Tenho que ir. O chefão precisa falar comigo.

— Grahame Coats? Escuta, Spider...

Mas Spider já tinha desligado o telefone, e o visor ficou normal.