— Que seja.
Fat Charlie começava a se sentir humano de novo. Não sentia mais dor. Não sentia mais ondas lentas de náusea tomando conta dele. Embora ainda não estivesse convencido de que o mundo era um lugar bom e alegre, não se sentia mais no nono círculo do inferno da ressaca, e isso era bom.
Daisy tinha ido ao banheiro. Ele ouviu as torneiras abertas e barulho de água espirrando.
Bateu na porta do banheiro.
— Eu estou aqui — respondeu Daisy. — Estou tomando banho.
— Eu sei. Quer dizer, não sabia, mas pensei que você provavelmente estava aí.
— Pode falar.
— Eu estava pensando.. — começou, do outro lado da porta. — Por que você voltou com a gente? Na noite passada.
— Bom. Você estava meio mal. E o seu irmão parecia precisar de ajuda. Hoje de manhã eu não trabalho. Então, voilà.
— Voilà — repetiu Fat Charlie. Por um lado, ela sentia pena dele. Por outro, realmente gostava de Spider.
Sim. Fat Charlie tinha um irmão havia apenas pouco mais de um dia e já achava que sua nova relação familiar lhe traria muitas surpresas. Spider era o sujeito descolado. Ele era o outro.
Então ela disse:
— Você tem uma voz fantástica.
— Quê?
— Você cantou no táxi, no caminho pra casa. “Unforgettable”. Foi lindo.
De algum modo, tinha colocado de lado o incidente do karaokê em sua mente, deixando-o encostado num lugar bem escuro, onde estão as coisas inconvenientes de que nos desfazemos. Agora o incidente tinha voltado, e ele não queria pensar naquilo.
— Você foi ótimo. Você canta pra mim mais tarde?
Fat Charlie tentou pensar desesperadamente em algo, mas foi salvo pela campainha.
— Vou ver quem está na porta.
Ele desceu as escadas e abriu a porta, e as coisas pioraram. A mãe de Rosie olhou para ele com um olhar capaz de azedar leite. Não disse nada. Segurava um grande envelope branco.
— Olá — disse Fat Charlie. — Sra. Noah. Bom vê-la. Ahm.
Ela fungou e segurou o envelope.
— Ah. Você está em casa. Então. Você não vai me convidar para entrar?
“Certo”, pensou Fat Charlie. “Gente do seu tipo sempre precisa ser convidada. Basta dizer não, e ela vai embora.”
— Claro, Sra. Noah. Por favor, entre. — “Então é assim que fazem os vampiros.” — Gostaria de uma xícara de chá?
— Não pense que pode me adular desse jeito. Porque você não pode.
— Ahm. Certo.
Subiram as escadas estreitas e entraram na cozinha. A mãe de Rosie olhava em volta e fazia uma cara que indicava que o lugar não se encaixava em seu padrão de higiene, já que continha comida.
— Café? Água? — “Não diga fruta de cera.” — Fruta de cera? — “Droga.”
— Rosie me disse que seu pai faleceu recentemente.
— Sim, é verdade.
— Quando o pai de Rosie faleceu, fizeram um obituário de quatro páginas na Cooks and’Cookery. Disseram que ele foi o único responsável pela chegada da comida caribenha neste país.
— Ah.
— Ele não me deixou em má situação. Tinha seguro de vida e era sócio de dois restaurantes famosos. Sou uma mulher rica. Quando eu morrer, irá tudo para Rosie.
— Quando a gente se casar, eu cuidarei dela. Não se preocupe.
— Eu não estou dizendo que você quer se casar com ela pelo dinheiro — observou a mãe de Rosie num tom de voz que deixava claro que isso era exatamente o que pensava.
A dor de cabeça de Fat Charlie ameaçava voltar.
— Sra. Noah, como posso ajudá-la?
— Eu conversei com a Rosie, e nós decidimos que vou ajudar vocês com o planejamento do casamento — explicou de um jeito afetado. — Preciso da sua lista de convidados. Aqueles que você planeja convidar. Nome, endereço, e-mail, telefone. Fiz um formulário para você preencher. Pensei que seria bom economizar o dinheiro dos correios e entregar pessoalmente, já que eu ia até Maxwell Gardens de qualquer jeito. Não esperava encontrá-lo em casa. — Ela deu o grande envelope branco para ele. — Haverá um total de 90 pessoas no casamento. Você tem permissão para convidar oito parentes e seis amigos próximos. Os amigos e quatro parentes ficarão na mesa H. O resto do grupo ficará na mesa C. O seu pai se sentaria conosco na mesa principal, mas, já que ele faleceu, nós cedemos o lugar para a tia Winifred, tia de Rosie. Você já decidiu quem será seu padrinho?
Fat Charlie fez que não com a cabeça.
— Bom, quando decidir, certifique-se de que ele não diga nada obsceno em seu discurso. Não quero ouvir nada no discurso do padrinho que não possa ser dito numa igreja. Você entendeu?
Fat Charlie imaginou o que a mãe de Rosie costumava ouvir na igreja. Talvez somente gritos de “Para trás! Criatura horrível dos infernos!”, seguidos de exclamações como “Está viva ou morta?” e de certo nervosismo por não saberem se alguém se lembrara de trazer uma estaca e um martelo.
— Acho que tenho mais de dez parentes. Quer dizer, tem os primos, as tias-avós, coisas assim.
— O que você obviamente é incapaz de compreender — começou a mãe de Rosie — é que um casamento custa dinheiro. Eu reservei 175 libras por pessoa, das mesas A a D, sendo que a mesa A é a principal, na qual ficam os parentes mais próximos de Rosie e minhas colegas do clube, e 125 libras para as mesas E até G, que acomodarão, você sabe, conhecidos, crianças e assim por diante.
— A senhora disse que meus amigos ficariam na mesa H.
— É a escala seguinte. Eles não terão petiscos de camarão com abacate ou a sobremesa.
— Quando a Rosie e eu falamos sobre isso da última vez, pensamos em fazer algo como um bufê com comida indiana.
A mãe de Rosie fungou.
— Ela às vezes não sabe o que pensa, aquela menina. Mas agora nós estamos de pleno acordo.
— Escuta. Talvez eu devesse falar com ela e depois voltar a falar com a senhora.
— Só preencha o formulário — disse a mãe de Rosie. Então ela perguntou, desconfiada: — Por que você não foi trabalhar?
— Eu. Ahm. Eu não estou. Digo, não estou trabalhando esta manhã. Não vou hoje. Não. É.
— Espero que você tenha avisado a Rosie. Ela planejava vê-lo na hora do almoço, foi o que me disse. Por isso não pôde almoçar comigo.
Fat Charlie processou a informação.
— Certo. Bom, obrigado pela visita, Sra. Noah. Vou conversar com a Rosie e...
Daisy entrou na cozinha. Usava uma toalha na cabeça e o robe de Fat Charlie grudado em seu corpo úmido. E perguntou:
— Você tem suco de laranja aí, né? Eu acho que vi suco quando estava procurando as outras coisas. Como está a sua cabeça? Melhorou?
Ela abriu a porta da geladeira e pegou um grande copo de suco de laranja.
A mãe de Rosie limpou a garganta. Não era o barulho de alguém limpando a garganta. Era mais o som de alguém pisando em cascalho.
— Oi — cumprimentou Daisy. — Eu sou Daisy.
A temperatura na cozinha começou a cair.
— Ah, é? — respondeu a mãe de Rosie. Havia pingentes de gelo pendurados no “é”.
— Imagino que nome teriam dado às laranjas — interrompeu Fat Charlie para quebrar o silêncio — se não fossem laranjas. Quer dizer, se fossem alguma fruta azul desconhecida, será que teriam sido chamadas de azuis? Será que a gente beberia suco de azul?
— Quê? — perguntou a mãe de Rosie.
— Caramba. Você diz cada maluquice — comentou Daisy, alegre. — Certo. Vou ver se acho as minhas roupas. Foi ótimo ver você.
Ela saiu. Fat Charlie continuava a prender a respiração.
— Quem. É. Ela — perguntou a mãe de Rosie, perfeitamente calma.
— Minha irm.... prima. Minha prima — respondeu Fat Charlie. — E que eu a considero uma irmã. A gente era muito próximo na infância. Ela decidiu vir para cá na noite passada. É meio maluquinha. Bom. Sim. Ela vai aparecer no casamento.
— Eu a colocarei na mesa H — observou a mãe de Rosie. — Ela se sentirá mais confortável lá.
Ela falou a última frase da mesma maneira como alguém diria algo como “Você quer uma morte rápida e piedosa ou prefere que o meu capanga se divirta um pouco antes?”