— Como você sabe?
— Ele mesmo disse.
— Eu não consigo pensar direito sem tomar café antes.
— Eu só preciso saber como eu faço para ele ir embora.
— Eu não sei — respondeu a Sra. Higgler. — Vou conversar com a Sra. Dunwiddy a respeito.
E desligou.
Fat Charlie foi de novo até o fim do corredor e bateu na porta.
— Que foi dessa vez?
— Quero falar com você.
A porta fez um clique e ficou totalmente aberta. Fat Charlie entrou. Spider estava deitado, nu, dentro da banheira de água quente. Bebia algo que tinha mais ou menos a cor de eletricidade, num copo comprido e gelado. As enormes janelas estavam totalmente abertas, e o barulho da cachoeira contrastava com o jazz lento e líquido que saía das caixas de som ocultas em algum lugar do quarto.
— Olha, você precisa entender que este lugar é a minha casa.
Spider piscou.
— Este lugar? Este lugar aqui é a sua casa?
— Bom, não exatamente. Mas o princípio é o mesmo. Quer dizer, você está no meu quarto extra e você é um hóspede.
Spider tomou um golinho de seu drink e afundou-se confortavelmente na água quente.
— Dizem que hóspedes são como peixes. Começam a feder depois de três dias.
— É um bom argumento.
— Mas é difícil. E difícil quando você passou a vida toda sem ver o seu irmão. Difícil quando ele nem mesmo sabia que você existia. Ainda mais difícil quando você finalmente o encontra e percebe que, para ele, você não vale mais que um peixe morto.
— Mas...
Spider esticou-se na banheira.
— Vou dizer uma coisa: eu não posso ficar aqui pra sempre. Então não esquenta. Vou embora e você nem vai perceber. Da minha parte, jamais pensaria em você como um peixe morto. Entendo que nós estamos passando por uma fase muito estressante. Então não vamos mais falar do assunto. Por que você não sai para almoçar, não vai ao cinema? Não esqueça de deixar a chave de casa.
Fat Charlie pôs o paletó e resolveu sair. Colocou a chave de casa ao lado da pia. O ar fresco estava maravilhoso, embora o dia estivesse cinzento e cuspindo uma garoa fina. Comprou um jornal Parou numa barraquinha e comprou um saco grande de batatas fritas e um salsichão saveloy para o almoço. A chuvinha fina parou. Ele sentou-se num banco em frente a uma igreja, leu o jornal e comeu as fritas e o salsichão.
Estava com muita vontade de ver um filme.
Andou até o Odeon e comprou uma entrada para a primeira sessão que houvesse. Era um filme de ação e aventura, e já tinha começado quando ele entrou. Coisas explodiam. Foi ótimo.
Na metade do filme, ocorreu-lhe que havia algo de que ele não conseguia se lembrar. Estava ali na sua cabeça, em algum lugar, cocando, uns dois centímetros atrás dos olhos, e aquilo distraía sua atenção.
O filme terminou.
Fat Charlie percebeu que, embora tivesse gostado, não conseguia se lembrar muito bem do filme que acabara de ver. Então comprou um saco grande de pipoca e viu tudo de novo. Foi até melhor da segunda vez.
E da terceira.
Depois disso, achou que talvez devesse ir para casa, mas havia uma sessão dupla no fim da noite, em que passariam Eraserhead: Histórias Reais. Ele não vira nenhum dos dois, então assistiu a ambos, embora já sentisse, àquela altura, muita fome. Isso fez com que, no fim da sessão, não entendesse o propósito de Eraserhead ou o que a mulher fazia dentro do aquecedor. Ficou pensando se não o deixariam assistir de novo, mas explicaram a ele pacientemente, e diversas vezes, que precisavam fechar o cinema durante a noite, e perguntaram se ele não tinha para onde ir. Será que já não era hora de ir para casa e dormir?
Claro, ele precisava dormir, e já era hora de dormir, embora ele tivesse esquecido do fato por alguns instantes. Voltou a pé para Maxwell Gardens e ficou um pouco surpreso ao ver que a luz do seu quarto estava acesa.
Ao se aproximar da casa, viu as cortinas fechadas. Havia duas silhuetas à janela, movimentando-se. Pensou ser capaz de reconhecer ambas.
Elas se aproximaram e se fundiram numa única sombra.
Fat Charlie deu um grito alto e terrível.
Na casa da Sra. Dunwiddy havia um monte de animais de plástico. A poeira movia-se lentamente pelo ar, como se estivesse acostumada com os raios de sol de uma era mais preguiçosa e não conseguisse se adaptar a essa luz rápida dos dias de hoje. Havia um plástico transparente cobrindo o sofá e cadeiras que faziam barulho quando a gente se sentava nelas.
Na casa da Sra. Dunwiddy havia papel higiênico áspero com cheiro de pinho — rolos de papel não-absorvente, brilhoso, desconfortável ao toque. A Sra. Dunwiddy acreditava que era bom economizar, e papel higiênico áspero com cheiro de pinho era o máximo que ela se permitia gastar. Ainda é possível encontrar papel higiênico áspero se você procurar bastante e estiver preparado para pagar pelas conseqüências.
A casa dela tinha cheiro de água de violeta. Era uma casa velha. As pessoas esquecem que os filhos dos colonos da Flórida já eram velhos e velhas quando os austeros puritanos chegaram a Plymouth Rock. A casa não era tão velha assim. Fora construída na década de 20, durante um plano de desenvolvimento da Flórida, para ser uma casa-modelo, representar as casas hipotéticas que outros compradores descobririam ser incapazes de construir nos terrenos cheios de pântanos com crocodilos que lhes vendiam. A casa da Sra. Dunwiddy sobrevivera a furacões sem perder uma única telha.
Quando a campainha tocou, a Sra. Dunwiddy estava recheando um pequeno peru. Fez “tsc” com a língua, chateada, lavou as mãos e andou pelo corredor até a porta da frente, olhando o mundo com seus óculos de lentes bem grossas, com a mão esquerda passando pelo papel de parede.
Ela abriu uma fresta da porta e olhou para fora.
— Louella? Sou eu — disse Callyanne Higgler.
— Entra.
A Sra. Higgler seguiu a Sra. Dunwiddy de volta à cozinha. A Sra. Dunwiddy abriu a torneira, pôs as mãos embaixo d’água e continuou a pegar montes de recheio úmido de farinha de milho e enfiar bem fundo dentro do peru.
— Está esperando visita?
A Sra. Dunwiddy fez um ruído evasivo.
— É sempre bom a gente ficar preparada. Que tal me dizer o que tá acontecendo?
— O filho do Nancy. Charlie.
— O que tem ele?
— Bom, eu falei pra ele do irmão quando veio aqui na semana passada.
A Sra. Dunwiddy tirou a mão de dentro do peru.
— Não é o fim do mundo.
— Eu contei pra ele como entrar em contato com o irmão.
— Aaaaah — exclamou a Sra. Dunwiddy. Ela mostrava reprovação com uma única sílaba. — E?
— E ele apareceu lá na Inglaterra. O menino tá ficando maluco.
A Sra. Dunwiddy pegou um bocado de farinha de milho úmida e meteu dentro do peru com tamanha força que teria feito a ave lacrimejar se ainda tivesse olhos.
— Não consegue fazer ele ir embora?
— Não.
Olhos astutos a observaram através de lentes bem grossas. E então a Sra. Dunwiddy disse:
— Eu fiz isso uma vez. Não posso fazer de novo. Não daquele jeito.
— Eu sei. Mas a gente precisa fazer alguma coisa.
A Sra. Dunwiddy suspirou.
— É verdade essa coisa que dizem. Se a pessoa vive o bastante, vai colher tudo o que plantou.
— Não tem outro jeito?
A Sra. Dunwiddy terminou de rechear o peru. Pegou um palito e fechou a pele do bicho. Cobriu tudo com papel alumínio.
— Acho que, se eu puser pra assar amanhã perto da hora do almoço, vai ficar pronto à tarde. Aí eu posso colocar de volta no forno quente no começo da noite, pra ficar pronto pro jantar.
— Quem vem pro jantar? — perguntou a Sra. Higgler.
— Você — respondeu a Sra. Dunwiddy. — Zorah Bustamonte. Bella Noles. E Fat Charlie Nancy. Quando aquele menino chegar aqui, vai estar morrendo de fome.