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Grahame Coats só trabalhava para si mesmo.

O telefone em sua mesa tocou, e ele atendeu.

— Sim?

— Senhor Coats? Maeve Livingstone está na linha. Eu sei que o senhor disse para transferi-la para o Fat Charlie, mas ele está de folga, e eu não sabia o que dizer. Digo que o senhor não está?

Grahame Coats pensou por alguns instantes. Antes que um ataque repentino do coração o levasse embora, Morris Livingstone, que fora certa vez o mais adorado comediante baixinho de Yorkshire do país, era a estrela de séries famosas da TV, como Short Back and Slidese seu programa de variedades do sábado, Morris Livingstone, I Presume. Até havia emplacado uma música entre “dez mais” na década de 80: “It s Nice Out (But Put It Away)”. Pessoa amigável e pacífica, não apenas deixara seus assuntos financeiros aos encargos da Agência Grahame Coats como também estabelecera, por sugestão de Grahame Coats, que o próprio Coats fosse fiduciário de seus bens.

Seria um crime não ceder a uma tentação dessas.

E havia também Maeve Livingstone. Seria justo dizer que ela havia aparecido por muitos anos, sem saber, em papéis principais e secundários nas mais diversas fantasias ocultas de Grahame Coats.

Grahame Coats disse à secretária:

— Sim, pode transferi-la. — E então, com voz solícita: — Maeve, como é bom falar com você. Como vai?

— Não muito bem.

Maeve Livingstone era dançarina quando conheceu Morris, e sempre foi mais alta que seu marido baixinho. Eles se adoravam.

— Bom, por que não me conta?

— Eu falei com Charles alguns dias atrás. Eu andei pensando. Bem, o gerente do meu banco andou pensando... O dinheiro de Morris. Você disse que nós receberíamos uma parte dele mais ou menos nesta época.

— Maeve — respondeu Grahame Coats com o que ele imaginava ser sua voz mais aveludada e profunda, a voz que acreditava atrair as mulheres —, o problema não é que o dinheiro não está na sua conta. E apenas uma questão de liquidez. Como eu já disse, Morris fez vários investimentos imprudentes no fim da vida e, embora ele também tenha feito alguns bons investimentos, seguindo meus conselhos, precisamos deixar que esses bons investimentos tenham tempo para amadurecer. Não podemos tirar o dinheiro agora sem perder tudo. Mas não vos preocupais, não vos preocupais. Faço qualquer coisa por uma boa cliente. Eu farei um cheque da minha própria conta bancária para deixá-la com saldo. Quanto é que o gerente quer?

— Ele diz que vai ter que começar a devolver cheques e a BBC me disse que vai enviar o dinheiro correspondente aos lançamentos dos shows antigos em DVD. Esse dinheiro não foi investido, né?

— Foi o que a BBC disse? Para falar a verdade, nós estamos atrás deles para que nos paguem. Mas eu não quero colocar toda a culpa na BBC. A nossa contadora está grávida, e as coisas por aqui estão bem confusas. E Charles Nancy, com quem você conversou, está um tanto abalado. O pai dele morreu, ele tem viajado muito para fora do país...

— Da última vez que nos falamos — interrompeu ela —, você disse que tinha problemas porque estava instalando computadores novos aí.

— E de fato estávamos. Por favor, nem me faça falar nesses malditos programas de contabilidade. Como é mesmo que dizem? Errar é humano, mas... ahm... para atrapalhar tudo mesmo, você só precisa de um computador. Algo do tipo. Vou investigar o caso a fundo, à mão se necessário, do jeito mais tradicional, e o seu dinheiro voltará para você. E o desejo de Morris.

— O meu gerente diz que eu preciso de 10 mil libras imediatamente só para os cheques pararem de voltar.

— E você terá 10 mil libras. Estou fazendo um cheque para você neste exato momento. — Ele desenhou um círculo em seu bloco de anotações, com uma linha saindo do topo. Parecia mais ou menos uma maçã.

— Fico muito grata — respondeu Maeve, e Grahame ficou todo orgulhoso. — Espero não estar atrapalhando você.

— Imagina, você nunca atrapalha — disse Grahame Coats. — De forma nenhuma.

Desligou o telefone. “A parte mais engraçada”, pensou Grahame Coats, “é que os personagens cômicos de Morris sempre foram uma paródia do típico homem teimoso de Yorkshire, orgulhoso por saber o paradeiro de cada centavo que tinha.”

“Foi uma bela jogada”, pensou Grahame Coats, e acrescentou dois olhos e duas orelhas à maçã. Agora o desenho se parecia, ele decidiu, mais ou menos com um gato. Logo seria a época de trocar toda uma vida dedicada ao roubo de celebridades mimadas por uma vida com muito sol, piscinas, excelentes refeições, bons vinhos e, se possível, muito sexo oral. Grahame Coats estava convencido de que as melhores coisas da vida poderiam sempre ser trocadas por dinheiro.

Desenhou uma boca no gato e a encheu de dentes afiados, de modo que agora o desenho parecia um pequeno leão da montanha. Enquanto desenhava, começou a cantar numa voz sibilante de tenor.

When I were a young man my father would say It’s lovely outside, you should go out and play But now that I m older, the ladies all say It’s nice out, but put it away.[2]

Morris Livingstone, já morto, pagara pelo duplex em Copacabana e pela instalação da piscina na ilha de Saint Andrews, e ninguém deveria pensar que Grahame Coats não se sentia grato a ele.

It’s nice out, but put it awaaaaaaay

Spider sentia-se estranho.

Alguma coisa estava acontecendo: uma sensação esquisita alastrava-se como uma névoa, e aquilo arruinava o seu dia. Ele não conseguia identificar o que era e não gostava nada daquilo.

Se havia uma coisa que ele definitivamente não sentia, essa coisa era culpa. Simplesmente não era o tipo de sentimento que ele costumava ter. Sempre se sentiu o máximo. Sempre se sentiu no controle. Não se sentia culpado. Não se sentiria culpado nem se fosse pego em flagrante roubando um banco.

E lá estava, pairando sobre ele, uma nuvem de desconforto.

Até aquele momento, Spider acreditara que deuses eram diferentes: eles não tinham consciência, nem precisavam ter. A relação de um deus com o mundo, mesmo um mundo no qual vivia, tinha tanta ligação emocional quanto a ligação emocional existente no caso de alguém que conhece a estrutura geral de jogo de computador e se arma com vários códigos para burlar o jogo.

Spider sempre se divertia. Era o que sabia fazer. Essa era a parte importante. Não reconheceria o que é a culpa nem se alguém desse a ele um guia ilustrado com todas as partes explicadas num diagrama. Não que fosse irresponsável. Ele não estava presente no dia em que distribuíram o tal sentido de responsabilidade. Mas algo havia mudado dentro ou fora dele, não sabia ao certo, e isso o perturbava. Serviu-se de mais um drink. Fez um gesto com a mão, e a música ficou mais alta. Mudou o CD, de Miles Davis para James Brown. Ainda assim, não adiantou.

Deitou-se na rede, sob o sol tropical, ouvindo a música, divertindo-se com o fato de que era maravilhoso ser ele mesmo. Pela primeira vez, aquilo de alguma maneira não lhe bastava.

Levantou-se da rede e foi até a porta.

— Fat Charlie?

Não houve resposta. O apartamento parecia vazio. Do lado de fora havia um dia cinzento acompanhado de chuva. Spider gostava da chuva. Parecia adequada à situação.

Com um trilado suave, o telefone tocou. Spider atendeu.

Era a voz de Rosie.

— É você?

— Oi, Rosie.

— Ontem à noite — começou ela. E depois não disse nada. Mas retomou: — Foi tão maravilhoso para você como foi para mim?

— Eu não sei. Para mim foi maravilhoso. Então imagino que a resposta seja “sim”.

— Humm. — Ficaram calados. — Charlie?

— Humm?

— Eu até gosto de ficar calada, sem falar nada. Só de saber que você está aí do outro lado da linha.

— Eu também.

Saborearam a sensação de não falar nada por mais alguns instantes, fazendo-a durar mais.

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“Quando eu era mais jovem, meu pai me dizia Está um dia tão lindo, vá brincar lá fora Mas, agora que estou mais velho, todas as moças dizem É legal pra fora, mas ponha já pra dentro.” (N. T.)