Parecia pairar sobre elas, sobre tudo, e que abaixo dele havia cinco pessoas em volta de uma mesa. Uma das mulheres à mesa fez um gesto e derramou algo na tigela que havia no centro da mesa. Aquilo ficou com uma luz tão forte que cegou Fat Charlie por alguns instantes. Ele fechou os olhos e percebeu que de nada adiantava. Mesmo com os olhos fechados, a luz continuava muito forte.
Esfregou os olhos, à luz do dia. Olhou em volta.
Uma parede rochosa se estendia até o céu, por trás dele: era uma montanha. À sua frente havia um fosso profundo: um penhasco íngreme. Foi até a beira do penhasco e olhou com cuidado. Viu algumas coisinhas brancas que pensou serem ovelhas até se dar conta de que eram nuvens: grandes, brancas, fofas, bem distantes dele. Por trás das nuvens, não havia mais nada. Ele podia ver o céu azul. Parecia que, se continuasse olhando, veria o espaço e, além dele, nada além do brilho frio das estrelas.
Deu um passo para trás.
Virou-se e caminhou em direção às montanhas, tão altas que ele não conseguia ver o topo, tão altas que teve a impressão de que cairiam sobre ele, que o soterrariam para sempre. Forçou-se a olhar novamente para baixo, a manter os olhos no chão e, ao fazer isso, notou buracos na rocha que pareciam cavernas naturais.
O lugar entre as montanhas e o penhasco, onde ele estava, deveria ter, em sua avaliação, menos de 400 metros de largura. Era uma estrada de areia cheia de seixos grandes, com plantinhas e árvores marrons aqui e ali. A estrada parecia circundar as montanhas até desaparecer numa névoa distante.
“Tem alguém me observando”, pensou Fat Charlie.
— Olá — gritou, virando a cabeça. — Tem alguém aí?
O homem que saiu da caverna mais próxima tinha a pele bem mais escura que a de Fat Charlie, mais escura até que a de Spider. Seu cabelo comprido era de um tom amarelo alaranjado e circundava o seu rosto como se fosse uma crina. Usava uma pele amarelada e esfarrapada de leão em volta da cintura, com a cauda para trás. O rabo espantou uma mosca que havia em seus ombros.
O homem piscou os olhos dourados.
— Quem é você? — perguntou com uma voz poderosa. — E quem lhe deu autoridade para andar neste lugar?
— Meu nome é Fat Charlie Nancy. Meu pai era Anansi, a Aranha.
O homem assentiu com sua enorme cabeça.
— E o que faz aqui, ó filho de Compé Anansi?
Eles estavam sozinhos ali, Fat Charlie imaginava. Ainda assim, tinha a sensação de que havia muitas pessoas ouvindo, muitas vozes que nada diziam, muitos ouvidos atentos. Fat Charlie falou alto para que todos pudessem escutar:
— É o meu irmão. Ele está tornando a minha vida um inferno. Não tenho o poder de mandá-lo embora.
— Então você quer a nossa ajuda? — perguntou o leão.
— Sim.
— Este seu irmão. Ele é como você, tem sangue de Anansi?
— Ele não se parece em nada comigo — respondeu Fat Charlie. — Ele é um de vocês.
Um movimento fluido, dourado: o homem-leão saiu de um jeito leve, preguiçoso, da boca da caverna, percorreu as pedrinhas cinzentas e cobriu uns 50 metros em alguns segundos. Agora estava ao lado de Fat Charlie. Sua cauda fazia um movimento impaciente.
Com os braços cruzados, olhou para baixo, para Fat Charlie, e disse:
— Por que você mesmo não resolve o assunto?
Fat Charlie sentia a boca seca, como se a garganta estivesse cheia de poeira. A criatura que o encarava, muito mais alta que qualquer homem, não tinha cheiro de gente. As pontas de seus dentes caninos pressionavam seu lábio inferior.
— Não consigo — respondeu Fat Charlie com a voz esganiçada.
De uma caverna ao lado, surgiu um homem imenso. Sua pele era de um tom cinza, meio marrom, suas pernas eram gordas, muito gordas, e sua pele, enrugada.
— Se você e o seu irmão brigam, então você deve pedir ao seu pai que julgue a situação. Submeta-se à vontade do chefe da família. Essa é a lei.
Depois ele jogou a cabeça para trás e fez um barulho, pelo nariz e pela garganta, um barulho poderoso. Fat Charlie soube então que olhava para o Elefante.
Engoliu em seco.
— Meu pai morreu — disse, e agora sua voz estava novamente audível, muito mais do que esperava. Ela ecoava da parede do penhasco, voltava para ele após ecoar em centenas de cavernas, centenas de formações rochosas. Morreu morreu morreu morreu morreu, dizia o eco. — Por isso eu vim para cá.
O Leão disse:
— Não gosto nem um pouco de Anansi, a Aranha. Certa vez, há muito tempo, ele me amarrou num tronco e fez um jumento me arrastar pelo chão até o trono de Mawu, que fez todas as coisas. — Então rosnou de raiva, lembrando-se do fato, o que fez Fat Charlie querer sumir dali. — Continue andando. Deve haver alguém aqui que queira ajudá-lo, mas essa pessoa não sou eu.
E o Elefante:
— Eu também não. O seu pai me enganou e comeu a gordura da minha barriga. Ele me disse que estava fazendo alguns sapatos para mim, mas me cozinhou e ficou rindo enquanto se empanturrava. Não me esquecerei disso.
Fat Charlie caminhou.
Na caverna seguinte havia um homem usando um terno verde de bom caimento e um chapéu elegante, com uma faixa de pele de cobra ao redor. Usava botas de pele de cobra e um cinto do mesmo material. Fez um barulho sibilante quando Fat Charlie passou por ele.
— Continue andando, ó filho de Anansi — disse a Cobra, e sua voz ressoava de maneira seca e áspera. — A sua família só traz problemas. Não vou me meter nos seus problemas.
A mulher na caverna seguinte era muito bonita, e seus olhos pareciam gotas negras de petróleo. Seus bigodes de gato eram muito brancos em comparação a sua pele. Tinha quatro seios.
— Eu conheci o seu pai. Há muito tempo. Siiiim. — Ela balançou a cabeça, lembrando-se, e Fat Charlie teve a sensação de estar lendo a correspondência de alguém. Assoprou um beijo na direção de Fat Charlie, mas balançou a cabeça quando ele tentou se aproximar.
Ele continuou a andar. Uma árvore morta surgiu do chão à sua frente como um monte de velhos ossos cinzentos. As sombras ficavam mais compridas à medida que o Sol descia lentamente pelo céu infinito, por trás do penhasco, até o fim do mundo. O Sol era uma gigantesca bola laranja e dourada, e todas as nuvenzinhas por trás dele se tingiram de dourado e púrpura.
“O assírio sucumbiu como um lobo num aprisco”, pensou Fat Charlie, o verso do poema surgindo em sua mente de alguma lição de inglês havia muito esquecida. “E suas coortes brilhavam em púrpura e dourado.” Tentou lembrar o que era “coorte”, mas não conseguiu. Provavelmente, decidiu, algum tipo de carruagem.
Algo se mexeu ao seu lado, e ele se deu conta de que o que antes tomara por uma pedra marrom, debaixo da árvore morta, era um homem cor de areia, com as costas cheias de pintas, como se fosse um leopardo. Seu cabelo era muito longo, muito negro. Quando sorria, seus dentes se mostravam enormes como os de um felino. Ele sorriu apenas por um instante. Era um sorriso pouco amigável, que não indicava amizade ou alegria. Disse:
— Eu sou o Tigre. O seu pai me prejudicou centenas de vezes e me insultou outras milhares. O Tigre não se esquece.
— Sinto muito — desculpou-se Fat Charlie.
— Acompanharei você em seu passeio. Por alguns instantes. Você disse que Anansi morreu?
— Sim.
— Ora, ora, ora. Ele me fez de bobo tantas vezes. Certa vez, tudo pertenceu a mim. As histórias, as estrelas, tudo. Ele roubou tudo de mim. Talvez agora, depois de morto, as pessoas parem de contar essas histórias dele. As que riem de mim.
— Estou certo disso. Eu nunca ri do senhor.
Os olhos cor de esmeralda do Tigre brilharam, e ele disse:
— Sangue é sangue. Os herdeiros de Anansi têm o sangue de Anansi.
— Eu não sou o meu pai — discordou Fat Charlie.
O Tigre arreganhou os dentes. Dentes bem pontudos. Explicou:
— Você não sai por aí fazendo as pessoas rirem de tudo. O mundo lá fora é grande, muito sério. Não é para rir dele. Nunca. Você deve ensinar as crianças a sentir medo, a sentir muito medo. Ensiná-las a ser cruéis. Ensiná-las a ser um perigo oculto nas sombras. A esconder-se nas sombras e então pular, arranhar, atacar, sempre matar. Você sabe qual o verdadeiro sentido da vida?