— Ahm. Seria o amor ou outra coisa?
— O sentido da vida é o sangue quente da sua presa sobre a sua língua, a carne que cede aos seus dentes, o cadáver de seu inimigo abandonado ao sol para que os animais carniceiros terminem o serviço. Isso é a vida. Eu sou o Tigre, e sou mais forte do que Anansi jamais será. Sou maior, mais perigoso, mais poderoso, mais cruel, mais sábio...
Fat Charlie não queria estar ali, conversando com o Tigre. Não que o Tigre fosse louco. Era apenas bastante convicto de suas crenças, e suas crenças eram todas desagradáveis. Além disso, ele lembrava alguém e, embora Fat Charlie não conseguisse descobrir quem, sabia que era alguém de quem não gostava.
— O senhor me ajuda a me livrar do meu irmão?
O Tigre tossiu como se tivesse uma pena, ou um pássaro inteiro, arranhando sua garganta.
— Quer que eu pegue um pouco d’água?
O Tigre olhou para Fat Charlie desconfiado.
— Da última vez que Anansi me ofereceu água, acabei tentando comer a Lua refletida num pequeno lago e me afoguei.
— Eu só queria ajudar.
— Foi o que ele disse.
O Tigre inclinou-se na direção de Fat Charlie, olhou-o bem dentro dos olhos. Bem de perto, não parecia nada humano. Seu nariz era muito achatado, seus olhos dispunham-se na cabeça de um jeito diferente. Tinha cheiro de jaula de zoológico. A voz era um grunhido retumbante.
— Você pode me ajudar de uma maneira, filho de Anansi. Você e toda a sua família. Ficando bem longe de mim. Entendeu? Se quiser ter carne nos seus ossos.
Ele lambeu os lábios com uma língua vermelha, da cor de carne recém-abatida e muito mais comprida do qualquer língua humana.
Fat Charlie afastou-se certo de que, caso se virasse e corresse, sentiria os dentes do Tigre em seu pescoço. Não havia nada remotamente humano no Tigre agora. Era do tamanho de um tigre de verdade. Era todos os grandes felinos que comeram gente, todos os tigres que quebraram o pescoço de um ser humano como um gato doméstico se livra de um rato. Ele ficou olhando para o Tigre enquanto se afastava. Logo a criatura voltou para sua árvore morta, deitou-se sobre as rochas e desapareceu nas sombras. Apenas o movimento nervoso de sua cauda traía o disfarce.
— Não ligue para ele — disse uma mulher de dentro de uma caverna. — Venha aqui.
Fat Charlie não conseguia decidir se ela era atraente ou monstruosamente feia. Caminhou em sua direção.
— Ele faz essa pose de poderosão, mas tem medo da própria sombra. E tem mais medo ainda da sombra do seu pai. Não tem força nenhuma nas mandíbulas.
Havia algo canino em seu rosto. Não, não canino..
— Já eu — continuou, quando ele chegou perto — gosto de triturar os ossos. Ali é que está a coisa boa. É onde fica a parte mais gostosa, e ninguém sabe disso além de mim.
— Estou tentando achar alguém para me ajudar a fazer meu irmão ir embora.
A mulher jogou a cabeça para trás e riu. Uma risada insana, alta, longa. Fat Charlie se deu conta de quem era ela.
— Você não vai achar ninguém para ajudar você aqui. Todos sofreram quando contrariaram a vontade do teu pai. O Tigre odeia você e a sua raça mais do que qualquer coisa no mundo, mas mesmo ele não vai fazer nada enquanto seu pai estiver por aí afora, no mundo. Escute: siga por este caminho. Se quer saber, e eu tenho uma pedra profética atrás do meu olho, você não vai encontrar ninguém para ajudá-lo até achar uma caverna vazia. Aí você entra e fala com quem encontrar lá dentro. Entendeu?
— Acho que sim.
Ela riu. Não era uma boa risada. E disse:
— Não quer ficar aqui comigo um pouco primeiro? Posso educar você. Sabe o que dizem por aí. Ninguém é mais obsceno que a Hiena.
Fat Charlie balançou a cabeça e continuou andando, caminhando pelas cavernas à beira das montanhas do fim do mundo. Quando passava pela escuridão de cada caverna, dava uma olhada lá dentro. Havia gente das mais diversas formas e tamanhos, pessoas pequenas e altas, homens e mulheres. E, à medida que andava, quando se mexiam nas sombras, ele conseguia enxergar lombos ou escamas, chifres ou garras.
Às vezes ele as assustava quando passava por elas, e as criaturas iam para o fundo da caverna. Outras saíam, olhando para ele com curiosidade, de um jeito agressivo.
Algo saiu quicando das rochas acima de uma caverna e aterrissou no chão, ao lado de Fat Charlie.
— Olá — disse a criatura, sem fôlego.
— Olá — respondeu Fat Charlie.
Essa nova criatura era agitada, peluda. Seus braços e pernas pareciam muito esquisitos. Fat Charlie tentou adivinhar o que era aquilo. As outras pessoas-animais eram animais, claro, e pessoas também. Não havia nada estranho ou contraditório quanto a isso. Sua animalidade e humanidade combinavam-se como as listras de uma zebra e formavam outra coisa. Mas essa criatura parecia humana e também quase humana. Isso era um elemento de estranheza que fazia os dentes de Fat Charlie doerem. Então descobriu.
— Macaco. Você é o Macaco.
— Tem um pêssego aí? Uma manga? Um figo?
— Infelizmente não — respondeu Fat Charlie.
— Me dá alguma coisa pra comer, e eu sou seu amigo. — A Sra. Dunwiddy o alertara a respeito. Não dê nada a eles. Não faça nenhuma promessa. — Quem é você? O que você é? Parece só metade de alguma coisa. Você daqui ou de lá?
— Anansi era meu pai — explicou Fat Charlie. — Estou procurando alguém para me ajudar com o meu irmão, para fazê-lo ir embora.
— Isso pode deixar o Anansi com raiva. Péssima idéia. Se deixar o Anansi com raiva, nunca mais apareço em história nenhuma.
— Anansi está morto — respondeu Fat Charlie.
— Morto lá. Talvez. Mas morto aqui? Aí já são outros quinhentos.
— Então quer dizer que ele pode estar aqui?
Fat Charlie perscrutou com cuidado a montanha: a idéia de que seria possível encontrar o pai em alguma daquelas cavernas, sentado numa cadeira de balanço, o chapéu panamá verde enterrado na Cabeça, tomando goles de sua lata de cerveja e suprimindo um bocejo com suas luvas verde-limão parecia sem dúvida perturbadora.
— Quem? O quê?
— Você acha que ele está por aqui?
— Quem?
— O meu pai.
— O seu pai?
— Anansi.
O Macaco pulou para cima de uma pedra, aterrorizado, e ficou abraçando a pedra, com o olhar indo para lá e para cá, como se temesse a aproximação de um tornado.
— Anansi? Ele está por aqui? — perguntou o macaco.
— Foi isso o que eu perguntei.
O Macaco se balançou repentinamente e ficou de cabeça para baixo, pendurado pelos pés, olhando para Fat Charlie.
— Às vezes eu vou até o mundo. Eles dizem “Macaco, ó sábio Macaco, apareça, apareça. Venha comer os pêssegos que trazemos para você. E as nozes. E as migalhas. E os figos”.
— O meu pai está aqui? — insistiu Fat Charlie, paciente.
— Ele não tem uma caverna. Eu saberia se ele tivesse. Talvez tenha uma caverna, mas acabou esquecendo. Se você me desse um pêssego, eu conseguiria me lembrar.
— Mas eu não trouxe nada.
— Nenhum pêssego?
— Nada, infelizmente.
O Macaco se balançou e foi para o alto da pedra. E então sumiu.
Fat Charlie continuou a andar pelo caminho cheio de pedras. O sol tinha descido até ficar no mesmo nível do caminho, e queimava com uma cor alaranjada. Emitiu sua luz antiga até as cavernas e mostrou todas habitadas. Aquele deveria ser o Rinoceronte, com pele cinzenta, olhando para fora com seus olhos míopes. Mais à frente, da cor de um galho apodrecido em águas paradas, estava o Crocodilo, com os olhos negros e reluzentes.
Fat Charlie ouviu um farfalhar atrás dele, algum ser que se arrastava contra a pedra, e virou-se bem rápido. O Macaco olhava para ele, com os dedos das mãos arrastando-se no chão.