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A dor em sua bochecha foi violenta e súbita. Por um instante, acreditou que um dos pássaros talvez o tivesse machucado, ferido sua bochecha com o bico ou as garras. Então viu onde estava.

— Não me machuque de novo! Tudo bem, você não precisa me machucar!

Sobre a mesa, os pingüins estavam pequenos, derretidos. As cabeças e ombros haviam sumido. Agora as chamas queimavam dentro de bolhas negras disformes, em preto-e-branco, no que fora a barriga, e os pés permaneciam congelados em cera negra. Havia três velhas olhando para ele.

A sra. Noles jogou um copo d’água em seu rosto.

— Também não precisava fazer isso — disse Fat Charlie. — Eu voltei, não voltei?

A sra. Dunwiddy entrou na sala. Segurava, com ar triunfante, uma pequena garrafinha marrom.

— Sais para acordar. Tenho um pouco aqui. Comprei no ano de, sei lá, 67, 68. Nem sei se ainda prestam. Então olhou para Fat Charlie.

— Ele acordou! Quem acordou ele?

— Ele não estava respirando — explicou a sra. Bustamonte. — Então dei um tapa nele.

— E eu joguei água — emendou a sra. Noles. — Isso ajudou ele a voltar.

— Não preciso de sal para acordar. Já estou molhado e dolorido.

Mas, com suas mãos velhas, a sra. Dunwiddy já havia tirado a tampa do frasquinho e o enfiado sob o nariz de Fat Charlie. Ele respirou enquanto ia para trás, e inalou bastante amônia. Seus olhos lacrimejaram. Sentia-se como se tivesse levado um murro no nariz. Ficou com coriza.

— Pronto — disse a sra. Dunwiddy. — Tá se sentindo melhor?

— Que horas são?

— Quase cinco da manhã — respondeu a sra. Higgler. Ela tomou um gole de café de sua caneca gigante. — Ficamos tão preocupadas com você. Melhor contar pra gente o que aconteceu.

Fat Charlie tentou se lembrar. Não que as imagens se tivessem evaporado, como acontece nos sonhos. Foi como se a experiência das últimas horas tivesse acontecido com outra pessoa e ele devesse entrar em contato com essa pessoa com algum novo método de telepatia. Sua mente estava muito confusa. Toda a atmosfera colorida no estilo Mágico de Oz do outro lugar se dissolvia em tons sépia de realidade.

— Tinha umas cavernas. Eu pedi que me ajudassem. Tinha muitos animais lá. Ninguém quis ajudar. Todos tinham medo do meu pai. Aí uma disse que iria me ajudar.

— Uma?

— Alguns eram homens, outros eram mulheres. Foi uma mulher.

— Sabe dizer que bicho ela era? Crocodilo? Hiena? Rato?

Ele deu de ombros.

— Talvez conseguisse me lembrar se vocês não tivessem me batido e jogado água em mim. E enfiado sais no meu nariz. Isso me fez esquecer as coisas.

— Você se lembrou do que eu disse? De não dar nada, só fazer trocas? — perguntou a sra. Dunwiddy.

— Sim — respondeu ele, um pouco orgulhoso de si mesmo. — Sim. Havia um macaco que queria que eu lhe desse coisas, mas eu disse que não. Olha, acho que preciso beber alguma coisa.

A sra. Bustamonte pegou um copo de alguma coisa em cima da mesa.

— A gente achou que talvez você precisasse mesmo beber. Então coamos o xerez. Talvez tenha algumas ervinhas aí, mas nada de mais.

Fat Charlie estava com as mãos fechadas sobre o colo. Abriu a mão direita para pegar o copo. E então parou e ficou olhando para a própria mão.

— O quê? O que foi? — perguntou a sra. Dunwiddy.

Na palma de sua mão, negra e já sem forma, molhada de suor, havia uma pena. E então ele se lembrou. Lembrou-se de tudo.

A manhã cinzenta surgia. Fat Charlie entrou na perua da sra. Higgler e ocupou o assento do passageiro.

— Cê tá com sono? — perguntou ela.

— Não exatamente. Só me sentindo estranho.

— Era a Mulher Pássaro.

— Pra onde cê quer que eu te leve? Pra minha casa? Pra casa do teu pai? Prum hotel?

— Não sei.

Ela engatou a marcha e saiu com o carro para a rua.

— Aonde a senhora está indo?

Ela não respondeu. Bebeu um pouco de café da sua mega-caneca. E disse:

— Talvez o que a gente fez hoje de noite tenha sido pra melhor. Talvez não. Às vezes é melhor deixar esses assuntos de família para as próprias famílias resolverem. Você e o seu irmão... São tão parecidos. Acho que é por isso que vocês brigam.

— Deve haver um significado caribenho obscuro para a palavra “parecidos”. Talvez “totalmente diferentes”.

— Não vem fazer essa pose de britânico pra cima de mim. Eu sei do que to falando. Você e ele são farinha do mesmo saco. Eu lembro quando seu pai me falou “Callyanne, os meus meninos fazem mais besteira que...” Bom, não sei exatamente o que ele disse, mas o fato é que falou de vocês dois.

Um pensamento ocorreu-lhe.

— Ei, quando cê foi praquele lugar, onde ficam os deuses antigos, cê viu o seu pai?

— Acho que não. Eu teria me lembrado se tivesse visto.

Ela assentiu com a cabeça e ficou calada durante o resto do percurso.

Ela estacionou, e os dois saíram do carro.

Fazia um pouco de frio naquela manhã da Flórida. O Cemitério Jardim do Repouso parecia um cenário de filme: havia uma pequena névoa, no nível do chão, que fazia tudo ficar levemente desfocado. A sra. Higgler abriu um pequeno portão. Ela e Fat Charlie caminharam pelo cemitério.

Onde havia apenas terra sobre a cova de seu pai, agora havia grama. Na cabeceira da cova havia uma placa de metal com um vaso de metal acoplado e, no vaso, uma única rosa amarela.

— Que Deus tenha piedade do pecador nesta cova — disse a Sra. Higgler com uma voz grave. — Amém, amém, amém.

Eles tinham uma platéia: as duas garças com penas vermelhas no topo da cabeça que Fat Charlie vira em sua visita anterior ao cemitério andaram na direção dos dois, com a cabeça balançando, como dois aristocratas que vão visitar conhecidos na prisão.

— Xô! — espantou a Sra. Higgler.

Os pássaros olharam para ela, indiferentes, e não se mexeram.

Uma das garças mergulhou a cabeça na grama e surgiu com uma lagartixa debatendo-se em seu bico. Abocanhou o bicho e mexeu a cabeça. Logo o bicho fazia um volume na garganta da garça.

O coro do amanhecer se preparava: melros, papa-figos e tordos cantavam no mato por trás do Jardim do Repouso.

— Vai ser bom voltar pra casa — disse Fat Charlie. — Com sorte, ele já vai ter sido expulso de lá quando eu voltar. E aí tudo fica bem. Vou poder resolver as coisas com a Rosie.

Uma onda de otimismo tomou conta dele. Aquele seria um ótimo dia.

Nas velhas histórias, Anansi vive como eu e você, em sua casa. Ele é egoísta, é claro, e cheio de luxúria, enganador, mentiroso. Também tem bom coração, sorte, e às vezes é até honesto. De vez em quando é bom, outras vezes é mau. Mas nunca é malévolo. Na maioria das vezes, você fica do lado dele. Isso acontece porque Anansi é o dono de todas as histórias. Mawu deu as histórias para ele, no começo, há muito tempo. Tomou as histórias do Tigre e deu todas a Anansi. Ele tece a teia das histórias de um jeito tão bonito...

Nas histórias, Anansi é uma aranha, mas também é um homem. Não é difícil imaginar as duas coisas ao mesmo tempo. Até uma criança consegue.

As histórias de Anansi são contadas pelas avós e tias da costa Oeste da África e do Caribe, e também no mundo todo. Chegaram até os livros infantis: o velho Anansi, sorridente, pregando suas pelo mundo afora. O problema é que as avós, as tias e os escritores de livros infantis tendem a deixar de fora certas informações. Existem histórias que não são mais apropriadas para criancinhas.

Esta é uma história que você não achará nos livros infantis. Eu a chamo de.

Anansi e o Pássaro

Anansi não gostava do Pássaro porque, quando o Pássaro sentia fome, ela — sim, ela, porque era um pássaro fêmea — comia muitas coisas. Uma das coisas que comia eram as aranhas, e o Pássaro estava sempre com fome.

Antigamente eles eram amigos. Mas agora não são mais.