Algo diferente estava acontecendo, e ela não gostava nada disso. Fat Charlie não parecia mais uma pessoa vulnerável. Essa nova criatura, tão esperta, a confundia.
Spider, por sua vez, estava tendo trabalho. A maioria das pessoas não presta atenção nas outras. Mas não a mãe de Rosie. Ela percebia tudo. Naquele momento, dava golinhos em sua água quente, em sua xícara fina de porcelana. Sabia que acabara de perder uma batalha, mesmo sem saber do que se tratava. Então concentrou seu ataque em outra frente.
— Charles, meu querido, fale a respeito de sua prima Daisy. Fico preocupada, achando que pouca gente da sua família com parecerá. Você gostaria de dar a ela um papel maior na festa de casamento?
— Quem?
— Daisy — respondeu ela docemente. — A mocinha que encontrei na sua casa naquele dia, andando quase nua pela cozinha. Se é que ela era mesmo a sua prima, é claro.
— Mãe! Se o Charlie diz que era prima dele.
— Deixe que ele mesmo fale, Rosie — pediu a mãe de Rosie, e tomou outro golinho de sua xícara.
— Certo... Daisy...
Forçou-se a lembrar daquela noite com vinho, mulheres e música. Ele havia levado a mulher mais bonita e divertida com eles para o apartamento, depois de dizer-lhe que era idéia dela. Precisou de ajuda para trazer o peso semiconsciente de Fat Charlie para o andar de cima. Como já tinha desfrutado da atenção de várias mulheres durante aquela noite, trouxe aquela engraçadinha com ele do mesmo modo como alguém reserva um chocolatinho para comer depois do jantar, mas acabou descobrindo, após chegar em casa e colocar Fat Charlie, já limpo, para dormir, que não estava mais com fome. Era aquela.
— Ah, a minha doce priminha Daisy — continuou, sem pausa. — Estou certo de que ela adoraria se envolver com o casamento se estiver no país. Uma pena, ela é correspondente diplomática. Está sempre viajando. Um dia está aqui, e no outro já precisa entregar um documento confidencial em Murmansk.
— Você não tem o endereço dela? Ou telefone?
— Podemos procurá-la juntos, eu e a senhora — concordou Spider. — Procurar pelo mundo afora. Ela vive por aí.
— Então — começou a mãe de Rosie, como teria dito Alexandre o Grande ao ordenar o saque e a pilhagem de uma pequena vila na Pérsia —, da próxima vez que ela estiver na Inglaterra, convide-a para vir aqui. Eu a achei uma gracinha. Tenho certeza de que Rosie adoraria conhecê-la.
— Sim — respondeu Spider. — E verdade. Vou trazê-la, sem dúvida.
Cada pessoa que existiu, existe ou existirá possui sua música. Não é uma música escrita por outra pessoa. Ela tem sua própria melodia, sua própria letra. Poucas pessoas chegam a cantar sua própria música. A maioria de nós teme que não façamos jus a ela com nossa voz, ou que a letra seja muito boba, ou muito franca, ou muito estranha. Então, em vez disso, as pessoas vivem suas músicas.
Vejamos Daisy, por exemplo. Sua música, que esteve no fundo de sua mente durante grande parte da sua vida, tinha um ritmo que exprimia confiança, um ritmo de marcha, e a letra falava sobre proteger os mais fracos. O refrão começava com “Malfeitores, cuidado!” e, portanto, era muito boba para ser cantada em voz alta. Ela às vezes acompanhava a melodia, fazendo “hum-hum” no chuveiro enquanto se ensaboava.
Isso é basicamente tudo o que precisamos saber a respeito de Daisy. O resto são detalhes.
O pai de Daisy nasceu em Hong Kong. Sua mãe era da Etiópia, de uma família rica de exportadores de tapete. Tinham uma casa em Addis Ababa, e outra casa mais uns terrenos em Nazret. Os pais de Daisy conheceram-se em Cambridge. Ele estudava computação, antes mesmo de isso ser visto como uma carreira promissora, e ela devorava livros de química molecular e direito internacional. Eram dois jovens igualmente estudiosos, naturalmente tímidos e em geral ansiosos. Ambos sentiam saudade de casa, mas por motivos bem diferentes. No entanto ambos jogavam xadrez e encontravam-se nas tardes de quarta-feira no clube de xadrez. Como eram novatos, foram encorajados a jogar juntos e, no primeiro jogo, a mãe de Daisy derrotou facilmente o pai.
O pai de Daisy ficou irritado com isso, tanto que timidamente pediu que jogassem de novo na quarta-feira seguinte, e todas as quartas-feiras que se seguiram (com exceção das férias e dos feriados) nos dois anos seguintes.
A interação social dos dois aumentava, assim como as habilidades sociais de ambos e o inglês dela. Juntos, deram-se as mãos e fizeram parte de um protesto contra a chegada de enormes caminhões carregados de mísseis. Juntos, embora participassem de um grupo ainda maior, viajaram para Barcelona para protestar contra o fluxo interminável do capitalismo internacional e para deixar registrados seus protestos contra as hegemonias corporativas. Essa também foi a época em que oficialmente experimentaram o gás lacrimogêneo e o pulso do sr. Day foi torcido enquanto era empurrado pela polícia espanhola.
Então, certa quarta-feira, no começo de seu terceiro ano em Cambridge, o pai de Daisy derrotou a mãe de Daisy no xadrez. Ele ficou tão feliz, sentiu-se tão triunfante que, cheio de alegria e ousadia pela vitória, pediu sua mão em casamento. A mãe de Daisy, que no fundo tinha medo de que tão logo ele ganhasse uma partida perdesse o interesse nela, disse sim, é claro.
Ficaram na Inglaterra e continuaram a vida acadêmica. Tiveram uma filha, a quem deram o nome de Daisy porque na época tinham (e com a qual de fato andavam por aí, para a diversão de Daisy, muito tempo depois) uma bicicleta do tipo “tandem”. Uma bicicleta para duas pessoas. (Referência a uma canção popular chamada “A Bicycle Built for Two”, cujo refrão é o seguinte: Daisy, Daisy, /Give me your answer do! / I m half crazy, /All for the love of you/It won t be a stylish marriage, /I can ‘t afford a carriage, / But you ll look sweet on the seat/Of a bicycle built for two! N.T.)
Mudaram-se de universidade para universidade, por toda a Inglaterra: ele dava aulas de ciência da computação, enquanto sua esposa escrevia livros que ninguém queria ler, sobre hegemonias corporativas internacionais, e livros que muita gente queria ler, sobre xadrez, sua história e estratégias. Assim, num ano bom, ela conseguia ganhar mais dinheiro que ele, mas nunca era o bastante. O envolvimento de ambos com a política foi arrefecendo à medida que envelheciam. Quando se aproximavam da meia-idade, tinham se transformado num casal feliz, sem grandes interesses além de si próprios, do xadrez, de Daisy e da reconstrução e dos métodos para eliminar bugs de sistemas operacionais havia muito esquecidos.
Nenhum dos dois entendia Daisy. Nem um pouquinho.
Culpavam-se por não terem colocado um freio na fascinação que a filha sentia pela polícia quando isso começou a se manifestar, mais ou menos à época em que começou a falar. Daisy apontava os carros da polícia na rua com a mesma excitação com que outras garotinhas apontam para pôneis. Seu sétimo aniversário foi comemorado de modo a permitir que ela usasse seu uniforme de policial júnior. Ainda há fotografias dela, tiradas no andar de cima da casa dos pais, com sua carinha de menina de 7 anos, demonstrando a mais perfeita alegria ao olhar para seu bolo de aniversário: sete velinhas circundando uma sirene azul.
Daisy tornou-se uma adolescente esforçada, alegre e inteligente, que deixou os pais felizes quando foi estudar direito e computação na Universidade de Londres. Seu pai sonhava que ela se tornasse professora de direito. A mãe sonhava que ela fosse advogada do Conselho da Coroa, talvez até mesmo juíza, para usar a lei para esmagar as hegemonias corporativas sempre que aparecessem. Mas aí Daisy estragou tudo fazendo os testes de admissão para a polícia, que a recebeu de braços abertos: por um lado, havia as diretrizes de que era preciso aumentar a diversidade no corpo policial; por outro, os crimes por meio de computador e as fraudes tecnológicas eram cada vez mais comuns. Eles precisavam de Daisy. Na verdade, precisavam de um exército de Daisies.