Enviou cartões-postais de Paris, Roma, Atenas, Lagos e Cidade de Cabo. O postal de Nanquim dizia que ela definitivamente não gostava daquilo que diziam ser comida chinesa na China e mal conseguia esperar para voltar a Londres e comer comida chinesa de verdade.
Morreu enquanto dormia num hotel em Williamstown, na ilha caribenha de Saint Andrews.
No funeral, num crematório no sul de Londres, Fat Charlie esperava ver o pai. Talvez o velho aparecesse liderando uma banda de jazz, ou seguido pelo corredor por uma trupe de palhaços ou meia dúzia de chimpanzés fumando charuto e andando de triciclo. Mesmo durante o cerimonial, Fat Charlie às vezes olhava para trás, sobre o ombro, para a porta da capela. Mas seu pai não estava lá — apenas os amigos de sua mãe e familiares mais distantes, a maioria mulheres gordas usando chapéus pretos, assoando o nariz, enxugando os olhos com um lenço e meneando a cabeça.
Durante o hino final, depois que o botão foi pressionado e a mãe de Fat Charlie descia pela esteira até sua recompensa final, Fat Charlie notou um homem que aparentava ter sua idade no fundo da capela. Não era seu pai, obviamente. Era alguém que ele não conhecia, alguém que talvez nem tivesse notado, ali no fundo, nas sombras, caso não estivesse procurando seu pai... Lá estava aquele estranho, usando um terno preto elegante, olhos baixos, uma mão sobre a outra.
Fat Charlie deixou seu olhar se demorar um pouco além do necessário, e o estranho o viu e sorriu para ele sem alegria. Era o tipo de sorriso que sugeria que eles estavam passando por aquilo juntos. Não era o tipo de expressão que você vê no rosto de estranhos, mas ainda assim Fat Charlie não conseguia lembrar quem era. Voltou-se para a frente da capela. Cantaram “Swing Low, Sweet Chariot”, um hino religioso que Fat Charlie tinha certeza de que sua mãe sempre detestara, e o reverendo Wright os convidou para ir até a casa da tia-avó de Fat Charlie, Alanna, para comerem um pouco.
Não havia ninguém na casa da tia Alanna que ele já não conhecesse. Durante anos após a morte de sua mãe ele se perguntava quem era aquele estranho, por que ele estava ali. Às vezes Fat Charlie achava que havia sido apenas sua imaginação...
— Então — disse Rosie, bebendo seu Chardonnay. — Você liga para a Sra. Higgler e dá a ela o número do meu celular. Diga a data do casamento— Acha que nós devemos convidá-la?
— Sim, se a gente quiser. Não acho que ela virá. Ela é uma velha amiga da família. Conhece o meu pai há muito tempo.
— Então dê uma sondada. Para ver se a gente deve mandar um convite.
Rosie era uma boa pessoa. Havia nela um pouco da essência de um Francisco de Assis, de um Robin Hood, de um Buda, da bruxa boa do Mágico de Oz e, na opinião dela, saber que reuniria seu verdadeiro amor e o pai que há muito não via dava ao casamento uma dimensão extra. Não era mais apenas um casamento: era praticamente uma missão humanitária. Fat Charlie conhecia Rosie havia tempo suficiente para saber que jamais deveria impedir sua noiva de exercitar sua necessidade de Fazer o Bem.
— Vou ligar para a Sra. Higgler amanhã — disse ele.
— Quer saber — começou Rosie, enrugando o nariz de um jeito adorável —, ligue para ela hoje à noite. Não é tão tarde lá nos Estados Unidos, afinal de contas.
Fat Charlie fez que sim com a cabeça. Saíram do bar-adega juntos, Rosie com passinhos leves, Fat Charlie com passos de alguém prestes a ser enforcado. Ele dizia a si mesmo para que não se preocupasse à toa. A Sra. Higgler talvez tivesse se mudado ou estivesse com o telefone cortado. E possível. Tudo é possível.
Foram até o apartamento de Fat Charlie, no andar de cima de uma pequena casa em Maxwell Gardens, perto da Brixton Road.
— Que horas são agora na Flórida? — perguntou Rosie.
— Fim da tarde.
— Bom. Vamos lá então.
— Talvez devêssemos esperar um pouco. Caso ela esteja fora de casa.
— Ou talvez a gente deva ligar agora, antes de ela se ocupar com o jantar.
Fat Charlie achou seu velho caderninho de endereços e, na letra H, havia um pedaço de envelope, com a letra de sua mãe, com um número de telefone e, embaixo dele, o nome Callyanne Higgler.
O telefone tocou e tocou.
— Ela não está em casa — disse a Rosie. Porém, naquele exato momento, atenderam ao telefone do outro lado da linha, e uma voz feminina disse:
— Alô? Quem fala?
— Ahm, é a senhora Higgler?
— Quem está falando? Se for mais um daqueles vendedores de telemarketing, pode me tirar da tua lista agora ou eu processo você. Eu conheço os meus direitos.
— Não, sou eu. Charles Nancy. Eu era seu vizinho.
— Fat Charlie? Mas olha só que surpresa. Procurei o teu telefone a manhã inteira. Revirei a casa toda, e nada de achar! Acho que eu escrevi o número no meu livro de contabilidade velho. Revirei a casa. Aí eu pensei: “Callyanne, esta é uma ótima hora pra rezar e pedir ao Senhor que te ouça e te veja”. Eu me ajoelhei, mas meus joelhos já não estão lá essas coisas, então só juntei as mãos, mas mesmo assim não achei teu telefone. E olha só você me ligando. Isso é bem melhor, de certo ponto de vista, principalmente porque dinheiro não dá em árvore e eu não tenho como ficar ligando pro estrangeiro, mesmo numa situação dessas, mas eu ia te ligar, não se preocupe, por causa das circunstâncias..
E ela parou de repente, talvez para tomar fôlego ou para tomar um gole da enorme caneca de café fumegante que sempre carregava na mão esquerda. Durante aquela breve interrupção, Fat Charlie disse:
— Eu quero convidar o meu pai para vir ao meu casamento. Eu vou me casar. — Houve silêncio do outro lado da linha. — Mas vai ser só no fim do ano. O nome da minha noiva é Rosie — acrescentou, tentando manter a conversação. Começou a pensar se a linha não tinha caído. As conversas com a Sra. Higgler em geral eram unilaterais, e muitas vezes ela falava por você. E lá estava ela, deixando Fat Charlie dizer três frases inteiras sem interrupção. Decidiu arriscar uma quarta. — A senhora pode vir também se quiser.
— Ai, ai, ai, meu Deus do céu. Ninguém te contou?
— Contou o quê?
Então ela contou tudo, longamente, detalhadamente, enquanto ele permanecia parado e não dizia nada. Quando terminou, ele disse “Obrigado, Sra. Higgler”. Escreveu algo num pedaço de papel e depois disse: “Obrigado. Não, tudo bem, obrigado” mais uma vez. E desligou o telefone.
— E aí? — perguntou Rosie. — Conseguiu o número dele?
— O meu pai não vai poder comparecer ao casamento — respondeu. E acrescentou: — Eu preciso viajar para a Flórida.
Tinha um tom monocórdico na voz, sem emoção. Ele podia muito bem estar dizendo algo como “preciso pedir mais um talão de cheques”.
— Quando?
— Amanhã.
— Por quê?
— Um funeral. O do meu pai. Ele morreu.
— Ah... Eu sinto muito. Eu sinto muito...
Ela o abraçou. Ele ficou entre seus braços como um manequim de vitrine.
— Como foi que ele... ele estava doente?
Fat Charlie fez que não com a cabeça.
— Eu não quero falar sobre isso.
Rosie o abraçou bem forte, depois assentiu com a cabeça, condoída, e o soltou. Achava que ele estava muito abalado pela perda para falar a respeito.
Mas ele não estava. Não era isso. Na verdade, estava com muita vergonha.
Deve haver umas 100 mil maneiras respeitáveis de morrer. Por exemplo, saltar de uma ponte para dentro de um rio para salvar uma criança que está se afogando ou virar uma peneira ao tentar invadir sozinho o esconderijo de criminosos. Maneiras perfeitamente respeitáveis de morrer.