Naquele momento, quatro anos mais tarde, seria justo dizer que a carreira na polícia não correspondia às expectativas de Daisy. Não porque, como advertiram seus pais repetidas vezes, a polícia era um monólito institucionalmente racista e sexista que esmagaria sua individualidade, faria dela algo uniforme e sem alma, algo que a transformaria em parte daquela cultura de massa, como café instantâneo. Não. A parte frustrante do trabalho era fazer os outros policiais entenderem que ela também era uma policial. Chegou à conclusão de que, para a maioria dos agentes, o trabalho da polícia era algo feito para proteger o inglês médio das pessoas assustadoras, de origem social suspeita, que provavelmente só pensavam em roubar seus celulares. Do ponto de vista de Daisy, era algo bem diferente. Daisy sabia que um moleque em casa, na Alemanha, poderia mandar um vírus capaz de fazer parar um hospital, causando mais estrago que uma bomba. Daisy achava que os verdadeiros vilões nos dias de hoje sabiam o que eram sites FTP, conheciam os métodos complicados de encriptação e o funcionamento dos celulares descartáveis pré-pagos. E não estava certa de que os mocinhos sabiam tudo isso.
Tomou um pequeno gole do café de um copo plástico e fez uma careta. Enquanto via páginas e páginas na tela, o café esfriou.
Ela analisou toda a informação que Grahame Coats lhe dera. Sem dúvida, havia motivo para achar que tinha algo errado ali. Entre outras coisas, havia um cheque de 2 mil libras que supostamente Charles Nancy escrevera para si mesmo na semana anterior.
Exceto que... exceto que ela não tinha um bom pressentimento.
Caminhou pelo corredor e bateu na porta do superintendente.
— Pode entrar.
Camberwell fumara seu cachimbo à mesa durante 30 anos, até que foi instituída no prédio a política de proibição de fumo. Agora ele se virava com massinha de modelar, que transformava em bola, amassava, cutucava. Quando era um homem com um cachimbo na boca, era calmo, bem-humorado e, na opinião de seus subordinados, uma excelente pessoa. Agora, um homem com massinha de modelar na mão, era sempre irascível, nervoso. Num bom dia, conseguia ficar somente um pouco irritado.
— Sim?
— O caso da Agência Grahame Coats.
— Mm?
— Não tenho muita certeza quanto a ele.
— Não tem muita certeza? Mas do que diabos você precisa ter certeza?
— Bom, acho que talvez seja melhor eu abdicar do caso.
Ele não pareceu impressionado. Ficou olhando para ela. Sobre a mesa, sem testemunha, seus dedos trabalhavam a massinha azul no formato de um cachimbo.
— E por quê? — perguntou.
— Eu tive contato social com o suspeito.
— É? Você saiu de férias com ele? É madrinha dos filhos dele? O quê?
— Não. Eu o encontrei só uma vez. Passei a noite na casa dele.
— Então o que você está dizendo é que vocês fizeram aquilo?
Ele soltou um longo suspiro no qual o cansaço, a irritação e a vontade imensa de fumar um pouco de Condor apareciam em partes iguais.
— Não, senhor. Nada disso. Eu só dormi lá.
— E esse é o seu envolvimento com ele?
— Sim, senhor.
Ele amassou o cachimbo de massinha, fazendo-o virar uma bola disforme.
— Você percebe que está me fazendo perder o meu tempo, não?
— Sim, senhor. Desculpe.
— Faça o que tem que fazer. Não me perturbe.
Maeve Livingstone foi até o quinto andar de elevador.
A subida lenta e sacolejante deu a ela bastante tempo para ensaiar mentalmente o que diria a Grahame Coats quando chegasse ao escritório.
Carregava uma maleta marrom, que pertencera a Morris: era uma maleta bastante masculina. Usava uma blusa branca, uma saia jeans e, por cima, um casaco cinza. Suas pernas eram compridas, sua pele, muito branca, e seu cabelo permanecia, com apenas o mínimo de assistência química, tão loiro quanto na época em que Morris Livingstone casara-se com ela, 20 anos antes.
Maeve amara muito seu marido. Quando ele morreu, não apagou o número dele de seu celular, nem mesmo depois de ter cancelado a conta e devolvido o aparelho. Seu sobrinho tirara a foto de Morris que havia em seu celular, e ela não queria perdê-la. Gostaria de poder ligar para Morris agora, pedir um conselho seu. Lá embaixo, dissera seu nome no interfone, para abrirem a porta. Quando entrou na recepção, Grahame Coats já a esperava.
— Ora, como vai a minha bela dama?
— Precisamos conversar em particular, Grahame. Agora.
Grahame Coats sorriu de um jeito afetado. Estranhamente, suas fantasias mais íntimas sempre começavam com Maeve dizendo algo bem parecido antes de proferir coisas como “Eu preciso de você, Grahame. Tem que ser agora” e “Ah, Grahame, eu fui uma menina tão tão tão tão má, você precisa me corrigir” e, em algumas raras ocasiões, “Grahame, você é muito especial para ter uma mulher só, então vou apresentar você à minha irmã gêmea idêntica, que está sempre nua: Maeve II”.
Entraram no escritório dele.
Maeve, para o leve desapontamento de Grahame Coats, não disse nada parecido com precisar de sexo ali, naquele instante. Ela não tirou o casaco. Em vez disso, abriu a maleta, tirou de lá uma pilha de papéis e a colocou sobre a mesa.
— Grahame, seguindo a sugestão do gerente do meu banco, eu contratei os serviços de uma auditoria contábil para examinar os dados que você me passou nos últimos dez anos. Desde quando Morris ainda estava vivo. Você pode examinar os papéis se quiser. Os números não batem. Nenhum bate. Achei melhor falar com você sobre isso antes de entrar em contato com a polícia. Achei que devia isso a você, pela memória de Morris.
— Certamente deve — concordou Grahame Coats, escorregadio feito uma cobra deslizando em manteiga. — Deve sim, de fato.
— Bom... e então?
Maeve Livingstone ergueu uma sobrancelha perfeita. A expressão em seu rosto não era muito animadora. Grahame Coats preferia a versão de sua imaginação.
— Infelizmente tive um empregado aqui da Agência que não era muito honesto, Maeve. Eu mesmo chamei a polícia, na semana passada, quando me dei conta de que havia algo errado. Eles já estão investigando. Devido à natureza ilustre de vários clientes da Agência Grahame Coats, inclusive você, a polícia está mantendo o máximo de discrição. O que é melhor, não? — Ela não parecia ter ficado tão tranqüila quanto ele esperava. Tentou outro caminho: — Eles têm grandes esperanças de recuperar boa parte do dinheiro, senão tudo.
Maeve assentiu com a cabeça. Grahame Coats relaxou, mas só um pouco.
— Posso saber que empregado é esse?
— Charles Nancy. Digo a você que eu confiava nele plenamente. Foi um grande choque.
— Ah. Ele é um doce de pessoa.
— As aparências enganam — salientou Grahame Coats.
Ela então sorriu. Era um sorriso muito doce.
— Olha, isso não vai colar, Grahame. Isso já vem de muito tempo. Desde antes de Charles Nancy começar a trabalhar aqui. Provavelmente bem antes da minha época. Morris confiava completamente em você, e ainda assim você roubou o dinheiro dele. Agora você está tentando me dizer que está armando para cima de um funcionário seu ou culpando algum colega. Bom, não vai colar.
— Não — respondeu Grahame Coats com a voz contrita. — Desculpe.
Ela pegou a pilha de papéis.
— Só para saber, quanto é que você conseguiu roubar de Morris e de mim durante todos esses anos? Eu chuto uns 3 milhões de libras.
— Ah — disse ele, sem sorrir. Sem dúvida era uma quantia maior que aquilo, mas mesmo assim... — Deve ser mais ou menos isso.
Ficaram olhando um para o outro, e Grahame Coats ficou pensando a todo vapor. Ele precisava de tempo. Era disso que precisava.
— E se... E se eu pagasse a você essa quantia agora, em dinheiro? Com juros. Digamos, 50% sobre o valor em questão.
— Você está me oferecendo 4,5 milhões de libras? Em espécie?
Grahame Coats sorriu para ela da mesma maneira como cobras não costumam sorrir.