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Naquele momento, a única coisa que não o deixava totalmente feliz era o fato de ter resolvido contar a verdade a Rosie.

Spider não se dava muito bem com essa coisa de contar a verdade. Ele considerava a verdade algo fundamentalmente maleável, mais ou menos uma questão de opinião. E conseguia fabricar algumas opiniões bastante impressionantes quando precisava.

Ser um impostor não era o problema. Ele gostava de ser um impostor. Havia algo de bom nisso. Algo que se encaixava em seus planos, algo bastante simples e que poderia ser resumido mais ou menos assim: a) ir a algum lugar; b) divertir-se e c) ir embora antes de se sentir entediado. Ele sabia, bem no fundo, que já era hora de ir embora. Para ele, o mundo era como uma lagosta num prato — o guardanapo estava no seu pescoço, havia um pote de manteiga derretida à sua disposição e um conjunto de talheres complicados mas adequados para comer lagosta repousava na sua frente.

Exceto que..

Exceto que não queria ir embora.

Começava a refletir sobre a questão, algo que considerava bastante desconcertante. Em geral, ele nem sequer pensava, quanto mais refletia sobre as coisas. A vida sem reflexão sempre fora perfeitamente agradável — o instinto, o impulso e uma sorte absurda sempre lhe caíram bem até aquele momento. No entanto até mesmo os milagres só levam as pessoas até determinado ponto. Spider andava pela rua, e as pessoas sorriam para ele.

Combinara com ela que a encontraria no seu apartamento. Portanto ficou agradavelmente surpreso por vê-la no fim da rua, esperando por ele. Sentia uma sensação desagradável, algo que talvez fosse o começo da culpa, e acenou para ela.

— Oi, Rosie! — Ela caminhou em sua direção, sobre a calçada, e começou a sorrir. Eles resolveriam tudo. Tudo ficaria bem. — Você está tão bonita. Lindíssima. O que quer comer?

Rosie sorriu e deu de ombros. Passaram por um restaurante grego.

— Tudo bem se for comida grega?

Ela assentiu com a cabeça. Desceram alguns degraus e entraram. O restaurante estava escuro e vazio, já que abrira recentemente. O proprietário os encaminhou para um cantinho no fundo.

Sentaram-se um na frente do outro, em uma mesa para apenas duas pessoas. Spider começou:

— Eu queria contar algo a você. — Ela ficou quieta. — Não é ruim. Mas também não é bom. Mas... Enfim... É algo que você precisa saber.

O proprietário perguntou-lhes se queriam pedir algo. Ele sugeriu café e Rosie assentiu com a cabeça, concordando.

— Dois cafés — pediu Spider. — E pode nos dar uns cinco minutinhos? Precisamos ficar a sós um tempinho.

O dono do restaurante retirou-se.

Rosie ficou olhando para Spider, esperando.

Ele deu um longo suspiro.

— Certo. Ok. Deixa eu contar uma coisa pra você. Não é fácil, e não sei se consigo.. Certo. Olha. Eu não sou Fat Charlie. Sei que você pensa que eu sou, mas não sou. Sou o irmão dele, Spider. Você acha que eu sou ele porque nós somos meio parecidos. — Ela não disse nada. — Bem, na verdade não pareço muito com ele. Mas., sabe, isso não é fácil pra mim. Está bem! Não consigo parar de pensar em você. Sei que você é noiva do meu irmão, mas estou lhe pedindo., bem— Você consideraria largá-lo e ficar comigo?

Um bule de café chegou à mesa numa pequena bandeja prateada, com duas xícaras.

— É café grego — observou o dono do restaurante.

— Sim. Obrigado. Mas eu realmente preciso de uns minutinhos a sós...

— Está bem quente — continuou o homem. — Café bem quente. Forte. Grego. Não turco.

— Que bom. Olha, se você não se importa, pode nos dar cinco minutinhos, por favor?

O dono do restaurante deu de ombros e foi embora.

— Você provavelmente me odeia. Se eu fosse você, provavelmente também me odiaria. Mas é sério o que estou dizendo. Estou falando mais sério do que jamais falei em toda a minha vida. — Ela apenas olhava para ele, sem esboçar nenhuma reação. — Por favor — continuou ele. — Diga alguma coisa. Qualquer coisa.

Seus lábios se moveram, como se ela tentasse achar as palavras certas.

Spider aguardou.

A boca de Rosie abriu-se.

A primeira coisa que ele pensou foi que ela estava comendo alguma coisa, porque o que viu entre os dentes dela era marrom, e sem dúvida não era sua língua. Então a coisa moveu a cabeça e os olhos, olhinhos pequenos, redondos, pretos e brilhantes, e olhou para ele. Rosie abriu a boca de um jeito impossível, e os pássaros saíram.

Spider só teve tempo de dizer “Rosie?”, e o ar ficou repleto de bicos, penas, garras, um após o outro. Os pássaros saíam de sua garganta, cada um acompanhado de um pequeno ruído, como se ela estivesse tossindo ou sufocando, e voavam direto para Spider.

Ele ergueu um braço para proteger os olhos, e algo machucou seu pulso. Mexeu os braços histericamente, e algo voou para o seu rosto, direto para os olhos. Lançou a cabeça para trás, e o bico perfurou sua bochecha.

Então houve um momento de clareza horripilante: ainda havia uma mulher sentada do outro lado da mesa. Ele não conseguia entender como pôde tê-la confundido com Rosie. Para começar, o cabelo dela era impossivelmente negro, com mechas brancas aqui e ali. A pele não tinha o tom marrom quente da pele de Rosie, era negra como ébano. Usava um sobretudo esfarrapado de cor ocre. Ela sorriu e mais uma vez abriu bem a boca de um jeito absurdamente impossível. Agora conseguia ver dentro da boca dela os bicos cruéis e os olhos insanos das gaivotas.

Spider não parou para pensar. Resolveu agir. Agarrou a alça do bule e o ergueu com uma das mãos, enquanto com a outra tirava a tampa. Fez um movimento e lançou-o contra a mulher sentada à sua frente. O conteúdo do bule, café quente, escaldante, caiu em cima dela.

Ela sibilava de dor.

Pássaros chocaram-se e bateram suas asas no restaurante, mas não havia mais ninguém sentado à frente dele. Os pássaros voavam em todas as direções, batendo loucamente nas paredes.

O dono do restaurante veio até ele.

— O senhor está ferido? Eu sinto muito. Acho que vieram da rua.

— Tudo bem — respondeu Spider.

— O senhor está sangrando.

Ele deu a Spider um guardanapo, o qual ele pressionou contra a bochecha. O corte ardia.

Spider ofereceu-se para expulsar os pássaros para a rua. Abriu a porta, mas agora o lugar não continha mais pássaro nenhum. Encontrava-se exatamente como estava quando entrara.

Spider tirou do bolso uma nota de cinco libras.

— Tome. Pelo café. Preciso ir.

O dono do restaurante assentiu, agradecido.

— Pode ficar com o guardanapo.

Spider parou e pensou. Perguntou ao homem:

— Quando eu entrei, havia uma mulher comigo?

O proprietário parecia confuso. Talvez até mesmo assustado. Spider não sabia ao certo.

— Eu não me lembro.— — respondeu, como se estivesse aturdido. — Se o senhor estivesse sozinho, eu não o teria levado para aquela mesa ali. Mas eu não sei.

Spider foi para a rua. O dia ainda estava claro, mas a luz do sol não dava mais uma sensação de segurança. Olhou em volta. Viu um pombo virando e bicando uma casquinha de sorvete abandonada, um pardal sobre o parapeito de uma janela e, lá no alto, como um brilho de luz branca ao sol, com as asas estendidas, uma gaivota voava em círculos.

9

No qual Fat Charlie atende à porta e Spider encontra flamingos

Fat Charlie estava com mais sorte. Podia sentir isso. Venderam passagens a mais para o avião no qual embarcaria, então ele foi transferido para a primeira classe. A comida era excelente. Quando sobrevoavam o Atlântico, uma aeromoça veio informar-lhe que ganhara uma caixa de chocolates como cortesia e entregou-lhe o presente. Ele colocou a caixa no compartimento de bagagem superior e pediu um Drambuie com gelo.