— Eu fui atacado por pássaros no restaurante hoje de manhã. Você sabe alguma coisa a respeito? Sabe, não é?
— Não exatamente. Talvez. É que chegou a hora de você ir embora, só isso.
— É bom você não começar nada.
— Eu? Eu começar alguma coisa? Acho que até o momento fui um modelo perfeito de autocontrole. Você é que entrou na minha vida. Você deixou o meu chefe chateado, e agora a polícia está atrás de mim. Você anda beijando a minha namorada. Você acabou com a minha vida.
— Olha, se quer saber, você fez um excelente trabalho acabando com a sua vida sozinho.
Fat Charlie fechou o punho e acertou Spider na mandíbula, como numa cena de cinema. Spider cambaleou para trás, mais surpreso do que ferido. Colocou a mão no lábio, e viu sangue nos dedos.
— Você me bateu!
— E posso bater de novo — ameaçou Fat Charlie, que não sabia ao certo se podia mesmo. Sua mão estava doendo.
— Ah, é? — disse Spider, e lançou-se contra Fat Charlie, batendo repetidamente nele com os punhos. Fat Charlie reagiu, lançando o braço em volta da cintura de Spider e jogando-se no chão com ele.
Rolaram para lá e para cá no chão do corredor, batendo um no outro. Fat Charlie meio que esperava que Spider lançasse algum tipo de contra-ataque mágico, ou que tivesse uma força sobrenatural, mas os dois pareciam empatar. Ambos lutavam sem nenhuma técnica, como moleques — como irmãos — e, enquanto brigavam, Fat Charlie lembrou-se de que fizera a mesma coisa havia muito, muito tempo. Spider era mais esperto e mais rápido, mas se Fat Charlie conseguisse ficar por cima dele e segurar suas mãos...
Fat Charlie agarrou a mão direita de Spider, torceu-a por trás das costas dele e sentou-se sobre o peito do irmão, colocando todo seu peso.
— E então? Desiste? — perguntou.
— Não!
Spider contorcia-se, mas Fat Charlie não saía de sua posição, sentado sobre o peito dele.
— Eu quero que você prometa que vai sair da minha vida e deixar Rosie em paz. Para sempre.
Spider fez um movimento com raiva e deslocou Fat Charlie. Ele acabou caindo de bruços no chão da cozinha.
— Olha, eu avisei... começou Spider.
Então ouviram alguém batendo na porta lá embaixo. Batidas fortes, do tipo que indicavam que alguém precisava entrar urgentemente. Fat Charlie olhou para Spider, que fez uma careta para ele. Puseram-se de pé lentamente.
— Quer que eu atenda? — perguntou Spider.
— Não. É a minha casa. E eu vou atender a porta da minha casa, muito obrigado.
— Como quiser.
Fat Charlie foi até as escadas. E então virou-se:
— Depois que eu resolver isso, vou voltar pra resolver tudo com você. Faça suas malas. Você já está de saída.
Desceu as escadas, arrumando a camisa, tirando o pó do corpo, tentando parecer como se não tivesse acabado de participar de uma briga no chão.
Abriu a porta. Havia dois policiais grandes, de uniforme, e uma menor, bem mais exótica, em roupas simples.
— Charles Nancy? — perguntou Daisy. Olhou para ele como se fosse um estranho, sem nenhuma emoção nos olhos.
Fat Charlie engoliu em seco.
— Senhor Nancy, o senhor está preso. O senhor tem o direito de— Fat Charlie voltou-se para o interior da casa.
— Desgraçado! — gritou na direção das escadas. — Desgraçado, desgraçado filho-da-mãe, desgraçado, desgraçadooo!
Daisy deu um tapinha em seu ombro.
— Não gostaria de nos acompanhar sem oferecer resistência? — perguntou ela, com voz baixa. — Se não quiser, podemos fazê-lo cooperar. Mas não recomendo. Eles são bem eficientes em fazer os outros cooperarem.
— Não vou causar problemas — respondeu ele.
— Ótimo — disse Daisy.
Acompanhou Fat Charlie e o trancou na parte de trás de uma van preta da polícia.
Vasculharam o apartamento. Não havia absolutamente ninguém por lá. No fim do corredor, havia um pequeno quarto contendo diversas caixas com livros e carrinhos de brinquedos. Remexeram um pouco, mas não encontraram nada interessante.
Spider estava deitado no sofá de seu quarto, mal-humorado. Tinha ido para o quarto quando Fat Charlie foi atender à porta. Precisava ficar sozinho. Não lidava muito bem com discussões. Quando chegava a esse ponto, era o momento em que ia embora. Agora Spider sabia que era hora de ir, mas mesmo assim não queria.
Não sabia ao certo se ter mandado Rosie para casa havia sido o melhor a fazer.
O que queria mesmo — e Spider era alguém governado mais pelo verbo “querer”, nunca pelo verbo “dever” — era dizer a Rosie que a queria muito. Ele, Spider. Contar a ela que não era Fat Charlie. Que era algo bem diferente. E isso, por si só, não constituía exatamente um problema. Poderia simplesmente ter dito a ela, com bastante convicção, “Na verdade, eu sou Spider, o irmão de Fat Charlie, e você não tem nenhum problema quanto a isso. Para você, está tudo bem”, e o universo exigiria só um pouquinho dela, e ela aceitaria aquilo exatamente como tinha ido para casa. Ela aceitaria. Não se importaria nem um pouco.
Exceto que ele sabia, lá no fundo, que se importaria, sim. Os seres humanos não gostam de ser comandados pelos deuses. Talvez pareçam gostar, na superfície, mas bem lá no fundo, por baixo de tudo, se ressentem do fato. Eles sabem. Spider poderia dizer a ela que deveria ficar feliz com a situação, e ela ficaria. Mas isso seria tão real quanto pintar um sorriso no rosto dela — um sorriso que ela genuinamente acreditaria, de todas as maneiras possíveis, ser um sorriso autêntico. A curto prazo (e até aquele momento Spider só pensara em termos de curto prazo), nada disso teria importância. No entanto, a longo prazo, só traria problemas. Ele não queria uma criatura perturbada e furiosa, alguém que, embora o odiasse bem lá no fundo, ficasse perfeitamente calma, como uma boneca, na superfície. Ele queria Rosie. E, se fosse assim, ela não seria Rosie, certo? Spider ficou olhando pela janela para a magnífica cachoeira e o céu tropical por trás dela. Pôs-se a imaginar quando Fat Charlie viria bater à sua porta. Algo havia acontecido naquela manhã, naquele restaurante, e tinha certeza de que seu irmão sabia mais a respeito do que dizia.
Depois de certo tempo, ficou cansado de esperar e resolveu andar pelo apartamento. Não havia ninguém. O lugar estava uma bagunça — como se tivesse sido revirado de cabeça para baixo por profissionais treinados para aquilo. Spider decidiu que provavelmente Fat Charlie bagunçara o lugar para indicar o quanto estava chateado com Spider por ter apanhado na briga.
Olhou pela janela. Havia um carro da polícia estacionado atrás de uma van preta. Enquanto observava, o carro e a van foram embora.
Preparou algumas torradas. Passou manteiga nelas e comeu. Então caminhou pelo apartamento, fechando cuidadosamente todas as cortinas.
A campainha tocou. Spider fechou as últimas cortinas e desceu as escadas.
Abriu a porta. Rosie olhou para ele. Ainda parecia meio perturbada. Ficou olhando para ela.
— E então? Não vai me convidar para entrar?
— Claro. Entre.
Ela subiu as escadas.
— O que aconteceu aqui? Parece que houve um terremoto.
— É?
— Por que você está no escuro?
Ela foi abrir as cortinas.
— Não faça isso! Deixe as cortinas fechadas.
— Mas você está com medo de quê?
Spider olhou pela janela.
— Dos pássaros — por fim confessou.
— Mas os pássaros são nossos amigos — respondeu Rosie, como se falasse com uma criança.
— Os pássaros são os últimos dinossauros. São pequenos velociraptores com asas. Devoram bichinhos indefesos, nozes, peixes e até outros pássaros. São ótimos para pegar minhocas. Já viu uma galinha comer? Podem parecer inocentes, mas os pássaros são cruéis.
— Outro dia vi no jornal um caso de um pássaro que salvou a vida de um homem.
— Mas isso não muda o fato de que...
— Era um corvo, sei lá. Um desses pássaros pretos, grandes. O homem estava deitado na grama de seu quintal, em sua casa, na Califórnia, lendo uma revista. Aí ele ouviu um barulho de corvo querendo chamar sua atenção. Ele se levantou e foi até a árvore em que estava o pássaro. Aí o homem viu que embaixo da árvore havia um leão da montanha que já estava se preparando para pular sobre ele. Então entrou na casa. Se o corvo não tivesse avisado, ele seria o jantar do leão.