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— Não é um comportamento comum dos corvos, esse aí. Mas, se um corvo um dia salvou a vida de alguém ou não, isso não muda nada. Os pássaros continuam querendo me pegar.

— Certo.... — concordou Rosie, fazendo o possível para não soar como se achasse graça dele. — Os pássaros estão querendo pegar você.

— Isso.

— E eles querem pegar você porque...?

— Ahm...

— Deve ter algum motivo. Você não pode dizer que um monte de pássaros decidiu de repente que você é uma apetitosa minhoca.

— Acho que você não acreditaria em mim — disse ele, realmente achando isso.

— Charlie. Você sempre foi muito franco. Quer dizer, eu sempre confiei em você. Se você me contar, vou fazer o possível para acreditar. Vou tentar de verdade. Eu te amo e acredito em você. Então por que não experimenta para ver se eu acredito ou não?

Spider pensou no que ela disse. Pegou sua mão e apertou.

— Acho que eu preciso mostrar uma coisa pra você. — Levou-a até o fim do corredor. Pararam do lado de fora do quarto extra de Fat Charlie. — Tem uma coisa aqui dentro. Talvez explique tudo melhor do que eu.

— Você é um super-herói. E aqui é onde você guarda seus bat-apetrechos. É isso?

— Não.

— É alguma coisa meio pervertida então? Você gosta de usar roupas femininas, colar de pérolas e se chamar de Dora?

— Não.

— Seria então um trenzinho? Ou não?

Spider empurrou a porta do quarto extra de Fat Charlie e ao mesmo tempo abriu a porta para o seu quarto. As janelas ao fundo mostravam uma cachoeira que terminava numa piscina de água natural, lá embaixo. O céu tinha um tom mais azul que o de uma safira.

Rosie disse alguma coisa em voz baixa.

Virou-se, caminhou pelo corredor, entrou na cozinha e olhou pela janela, para o céu cinzento de Londres, feio, pesado. Voltou para o quarto.

— Eu não entendo. Charlie.. O que está acontecendo?

— Eu não sou o Charlie. Olhe para mim. Olhe bem para mim. Eu nem mesmo me pareço com ele.

Ela não estava mais fingindo que entrava na brincadeira. Seus olhos estavam arregalados, assustados.

— Eu sou o irmão dele. Eu estraguei tudo. Tudo. E acho que a melhor coisa que posso fazer é sair da vida de vocês, ir embora.

— Então onde está o Fat... Onde está Charlie?

— Eu não sei. Nós brigamos. Ele foi atender a porta, eu fui para o meu quarto, e ele não voltou mais.

— Não voltou mais? E você nem mesmo tentou saber o que aconteceu com ele?

— Ahm... Talvez tenha sido levado embora pela polícia. Mas é só uma hipótese. Não sei se isso é verdade.

— Me diga o seu nome — exigiu ela.

— Spider.

Rosie repetiu o nome. Lá fora, pela janela, acima do chuvisco causado pela cachoeira, viu um bando de flamingos voando. A luz do sol tingia suas asas de rosa e branco. Eram majestosos, incontáveis, e aquilo era a coisa mais linda que Rosie vira na vida. Olhou de volta para Spider e, ao olhar para ele, não conseguia compreender como acreditara que esse homem era Fat Charlie, uma pessoa cordata, aberta, atrapalhada. Esse homem era como um chicote prestes a estalar.

— Você não é mesmo Fat Charlie, certo?

— Eu já disse que não sou.

— Então... Com quem eu.... eu... Com quem... com quem eu dormi?

— Esse aí seria eu mesmo.

— Imaginei.

Deu-lhe um tapa no rosto com o máximo de força que conseguia. Ele sentiu seu lábio recomeçar a sangrar.

— Acho que eu mereço.

— Claro que merece.

Ela fez uma pausa. Então disse:

— Fat Charlie sabia disso tudo? Sabia sobre você? Que você estava saindo comigo?

— Bom, sim, mas ele...

— Vocês são doentes. Dois homens vis, doentes. Espero que apodreçam no inferno.

Lançou mais uma vez um olhar confuso para o quarto enorme, para a janela, observando as árvores tropicais, a enorme cachoeira e os flamingos, e saiu pelo corredor.

Spider sentou-se no chão com um fino fio de sangue escorrendo de seu lábio inferior, sentindo-se um idiota. Ouviu a porta da frente bater. Foi até a banheira de água quente, mergulhou a ponta de uma toalha na água, torceu-a e colocou na boca.

— Eu não preciso de nada disso.

Disse isso em voz alta. E mais fácil uma pessoa mentir para si mesma quando diz em voz alta.

— Não precisava de nenhum de vocês há uma semana e também não preciso mais. Não to nem aí. Pra mim chega.

Os flamingos atingiram as janelas como se fossem balas de canhão cor-de-rosa. O vidro quebrou. Fragmentos de janela voaram pelo quarto, espalhando-se e fincando nas paredes, no chão, na cama. O ar ficou repleto de corpos cor-de-rosa inquietos, uma confusão de asas enormes e bicos negros e curvados. O barulho da cachoeira invadiu o quarto.

Spider ficou encostado à parede. Havia flamingos entre ele e a porta, centenas deles: pássaros de 1,5 metro de altura que pareciam feitos somente de pernas e pescoço. Ficou de pé e deu vários passos através daquele campo minado de pássaros cor-de-rosa, raivosos, cada um deles o olhando com ódio através de seus olhos insanos. De longe, até pareciam bonitos. Um deles atacou a mão de Spider. Não chegou a perfurar a pele, mas doeu.

O quarto era grande, mas se enchia rapidamente de flamingos, que aterrissavam ali sem cuidado. E havia uma nuvem escura no céu azul, acima da cachoeira, que parecia ser outro grupo de flamingos a caminho.

As aves o bicavam, usavam as garras e batiam as asas perto dele. Spider sabia que isso não era exatamente o problema. O problema seria ser sufocado por um cobertor macio e cor-de-rosa de penas, com bicos como acessório. Seria uma maneira extremamente indigna de morrer, esmagado por pássaros — e nem mesmo eram pássaros inteligentes.

“Pense”, disse a si mesmo. “São flamingos. Pássaros estúpidos. Você é uma aranha.”

“E daí?”, pensou em resposta. “Como se você não soubesse disso.”

Os flamingos, no chão, o cercavam. Os que estavam no ar vinham em sua direção. Cobriu a cabeça com a jaqueta, e os flamingos que voavam começaram a atacá-lo. Era o mesmo que ter alguém lançando galinhas contra você. Ele titubeou e abaixou-se. “Ora, arrume um jeito de enganá-los, seu idiota.”

Spider ficou de pé e com dificuldade atravessou aquele oceano de asas e bicos até chegar à janela, que agora era uma abertura de vidro quebrado, pontiagudo.

— Pássaros imbecis — disse, vitorioso. Subiu no parapeito da janela.

Os flamingos não são conhecidos por sua inteligência nem por sua capacidade de solucionar problemas. Se confrontado com um arame e uma garrafa com algo comestível dentro, um corvo pode tentar transformar o arame numa ferramenta para puxar o que está dentro da garrafa. Um flamingo, por outro lado, tentará comer o arame se ele se parecer com um camarão, ou mesmo se não se parecer, porque nunca se sabe se é um tipo de bicho diferente. Portanto, se havia algo levemente suspeito ou absurdo quanto ao homem que estava de pé no parapeito da janela, insultando-os, os flamingos não perceberam. Ficaram olhando para ele com seus olhos vermelhos enlouquecidos, como coelhinhos assassinos, e voaram em sua direção.

O homem pulou da janela na direção da cachoeira e centenas de flamingos lançaram-se contra ele, no ar — muitos caindo no chão como pedras, já que os flamingos precisam correr um pouco antes de conseguir impulso para voar.

Logo o quarto estava repleto apenas de flamingos mortos ou feridos: os que quebraram as janelas, os que se chocaram contra as paredes, os que foram esmagados por outros flamingos. Os sobreviventes viram a porta do quarto abrir-se, aparentemente sozinha, e fechar-se de novo. Mas, como eram flamingos, não prestaram atenção nisso.