— Sabe, o que quer que seja, eu não fiz o que eles dizem que eu fiz.
— Que bom.
— Desculpe, mas será que eu poderia ter alguma coisa pra ler?
— Isso aqui parece uma biblioteca?
— Não.
— Quando eu era um policial mais novo, um camarada me pediu um livro. Aí arranjei pra ele o livro que eu tinha acabado de ler. Um livro de J. T. Edson, acho, ou talvez de Louis L’Amour. Aí o que ele fez? Entupiu a privada com o livro. Te digo que não vou fazer isso de novo.
O policial saiu e trancou a porta. Fat Charlie do lado de dentro, o policial do lado de fora.
Seu paisagista esperava por ele do lado de fora do aeroporto. Grahame Coats sentou-se no banco de trás de uma Mercedes preta e disse:
— Vamos para casa, por favor.
Da estrada que saía de Williamstown, a estrada que ia para sua residência no topo de uma colina, observou a ilha com um sorriso satisfeito, como se fosse dono daquilo.
Ocorreu-lhe que, antes de sair da Inglaterra, deixara uma mulher que considerava morta. Imaginou se não estaria viva, mas duvidou muito da possibilidade. Não se importava de ter matado. Na verdade, sentiu-se extremamente satisfeito, como se aquilo fosse algo que ele tivesse que fazer para se sentir completo. Ficou pensando se teria a oportunidade de matar novamente.
Ficou pensando se demoraria muito.
A coisa mais esquisita na opinião de Grahame Coats, que não era dado a exames de consciência, era o quanto se sentia normal, o quanto se sentia bem.
O comandante dissera a eles para apertar os cintos de segurança e que em breve estariam pousando em Saint Andrews. Saint Andrews era uma pequena ilha no Caribe que, ao declarar independência, em 1962, resolveu demonstrar que estava livre do regime colonial de várias maneiras, inclusive a criação de seu próprio sistema judiciário e uma peculiar ausência de tratados de extradição com o restante do mundo.
O avião aterrissou. Grahame Coats desembarcou e caminhou pela pista de pouso asfaltada, puxando sua malinha de rodas. Apresentou o devido passaporte — o de Basil Finnegan —, que foi carimbado. Pegou o resto da bagagem na esteira, saiu da alfândega vazia para o pequeno aeroporto e de lá para o sol glorioso que fazia. Usava short, camiseta e sandálias. Parecia um inglês em férias.
10
No qual Fat Charlie enxerga o mundo e Maeve Livingstone não está satisfeita
Fat Charlie sentou-se no cobertor, sobre a cama de metal, e esperou que algo acontecesse. Mas nada aconteceu. Parecia que tinham se passado meses, bem lentamente. Tentou dormir, mas não lembrava como fazer isso.
Bateu na porta com força.
Alguém gritou:
— Fica quieto!
Ele não conseguiu distinguir se era um policial ou um companheiro de prisão.
Caminhou pela cela durante, numa estimativa que lhe parecia bem modesta, uns dois ou três anos. Então se sentou e deixou que a eternidade o engolisse. Dava para ver a luz do dia através de um bloco grosso de vidro na parte superior da parede que cumpria a função de janela. Teoricamente era a mesma luz que ele via quando a porta se fechou atrás dele naquela manhã.
Fat Charlie tentou lembrar o que as pessoas faziam na prisão para passar o tempo, mas só conseguia pensar em escrever diários secretos e esconder objetos na bunda. Ele não tinha papel para escrever e começava a sentir que uma maneira decisiva de constatar se alguém se dava bem na vida era saber se precisava esconder objetos na bunda.
Nada aconteceu. Nada continuava a acontecer. Mais Nada. O Retorno do Nada. O Filho do Nada. Nada Ataca Novamente. Nada, Abbott e Costello e o Lobisomem..
Quando a porta foi destrancada, Fat Charlie quase pulou de alegria.
— Hora do exercício. Você tem direito de fumar um cigarro se estiver precisando.
— Eu não fumo.
— É mesmo um mau hábito.
O campo de exercícios consistia num espaço aberto no meio da delegacia, cercado de muros por todos os lados e telas de arame na parte de cima. Fat Charlie andou por ali e decidiu que, se havia uma coisa de que não gostava no mundo, era estar nas mãos da polícia. Ele nunca gostara de policiais mas, até aquele momento, tinha conseguido de alguma forma se apegar à crença fundamental na ordem natural das coisas, uma convicção de que havia algum tipo de poder — um vitoriano talvez pensasse na Providência Divina — que assegurava que os culpados seriam punidos e os inocentes, libertados. Essa fé caiu por terra com os acontecimentos recentes, substituída pela suspeita de que passaria o resto da vida dizendo ser inocente para inúmeros juizes e torturadores implacáveis, muitos dos quais com a aparência de Daisy, e de que acordaria na cela seis na manhã seguinte e descobriria que havia se transformado numa barata. Sem dúvida fora transportado para o universo malévolo que transformava as pessoas em baratas...
Algo caiu do céu sobre a tela de arame acima dele. Fat Charlie olhou para cima. Um melro o observava com desprezo e indiferença. Ouviu-se mais bater de asas, e juntaram-se ao melro vários pardais e uma ave que Fat Charlie pensou se tratar de um tordo.
Os pássaros olhavam para ele. Ele olhava de volta.
Mais pássaros surgiram.
Teria sido difícil para Fat Charlie determinar exatamente quando a acumulação de pássaros sobre a tela de arame deixou de ser interessante e passou a ser assustadora. Deve ter sido mais ou menos quando apareceu a primeira centena deles. O problema é que não chilreavam, cantavam ou piavam. Apenas ficavam pousados ali, observando.
— Vão embora! — ordenou Fat Charlie.
Como se fossem um único pássaro, eles não foram embora. Em vez disso, falaram. Falaram o nome dele.
Fat Charlie foi até a porta no canto. Bateu nela com força. Disse “Ei!” algumas vezes e começou a gritar por socorro.
Um barulho metálico. A porta abriu-se, e um membro da polícia civil de Sua Majestade, de pálpebras pesadas, disse:
— É bom você ter algum motivo pra isso.
Fat Charlie apontou para cima. Não disse nada. Não era preciso. O policial ficou boquiaberto, com o queixo caído, mole. A mãe de Fat Charlie teria dito ao homem para fechar a boca senão uma mosca entraria.
A tela estava deformada sob o peso de milhares de pássaros. Pequenos olhinhos olhavam para baixo, sem piscar.
— Deus do céu — disse o policial, e pôs Fat Charlie para dentro às pressas, sem dizer mais nenhuma palavra.
Maeve Livingstone sentia dor. Estava deitada no cháo. Acordou e sentiu os cabelos e o rosto molhados, quentes. Então dormiu novamente e, quando acordou, seus cabelos e seu rosto estavam pegajosos e frios. Sonhou, acordou e sonhou de novo, e acordou por tempo suficiente para ter consciência do ferimento na parte de trás de sua cabeça. Como dormir era mais fácil, já que não sentia dor, ela permitiu que o sono a envolvesse como um cobertor quentinho.
Em seus sonhos, caminhava por um estúdio de televisão, procurando Morris. Às vezes o via rapidamente nos monitores. Ele sempre parecia preocupado. Tentou sair de lá, mas todos os caminhos levavam ao estúdio.
“Estou com tanto frio”, pensou, e percebeu que acordara mais uma vez. A dor porém tinha diminuído. “No geral”, pensou Maeve, “estou bem.”
Algo a preocupava, mas não sabia exatamente o quê. Talvez fosse outra parte de seu sonho.
Não sabia onde estava, mas aquele lugar era escuro. Parecia algum tipo de armário para vassouras. Estendeu os braços para não esbarrar em nada no escuro. Deu alguns passos nervosos com os braços estendidos e os olhos fechados, então abriu os olhos. Agora se encontrava numa sala que conhecia. Era um escritório.
O escritório de Grahame Coats.
Ela se lembrou. Ainda estava meio mole por ter acabado de acordar. Não conseguia pensar direito. Sabia que não acordava totalmente até tomar sua xícara de café pela manhã. Mesmo assim, o pensamento lhe sobreveio: a falsidade de Grahame Coats, sua desonestidade, sua criminalidade, sua...