— Onde estamos?
— Acho que o nome é Skopsie. Uma cidadezinha na Itália ou coisa do tipo. Comecei a vir para cá há anos. O chocolate quente daqui é fantástico. O melhor que já tomei na vida.
Sentaram-se a uma mesa pequena, de madeira, pintada em vermelho vivo. Um garçom aproximou-se e disse alguma coisa numa língua que não pareceu italiano para Fat Charlie. Spider disse “Dos Chocolatos, amigo”. O homem assentiu com a cabeça e foi embora.
— Certo — começou Fat Charlie. — Agora você me deixou numa situação ainda mais difícil. Eles vão começar a me caçar por aí, só isso. Vai até aparecer no jornal.
— O que eles podem fazer? — perguntou Spider, sorrindo. — Mandar você pra prisão?
— Ah, não começa.
O chocolate quente chegou. O garçom o serviu em xícaras pequenas. A bebida tinha mais ou menos a mesma temperatura de lava derretida, e a consistência variava entre sopa de chocolate e creme de chocolate. O cheiro era maravilhoso.
Spider.então falou:
— Olha, a gente transformou essa nossa reunião de família numa tremenda bagunça, né?
— A gente? — Fat Charlie controlou muito bem sua raiva. — Não fui eu quem roubou minha noiva. Não fui eu quem fez com que eu fosse despedido do trabalho. Não fui eu quem causou a minha prisão..
— Não, não foi. Mas foi você quem colocou essa coisa dos pássaros no meio, não foi?
Fat Charlie tomou um pequeno gole de seu chocolate quente.
— Ai! Acho que queimei minha boca.
Olhou para o irmão e viu sua própria expressão olhando de volta: preocupado, cansado, assustado.
— Sim, fui eu quem fez os pássaros aparecerem. E agora, o que a gente faz?
— Eles fazem uma sopa de macarrão ótima aqui, aliás.
— Tem certeza de que estamos na Itália?
— Não muita.
— Posso fazer uma pergunta?
Spider fez que sim.
Fat Charlie tentou encontrar as palavras mais adequadas.
— Essa coisa dos pássaros. Em que eles aparecem como se tivessem escapado de um filme do Hitchcock. Você acha que isso só acontece na Inglaterra?
— Por quê?
— Porque eu acho que aqueles pombos ali estão olhando pra gente.
Apontou para o ponto mais distante da praça.
Os pombos não estavam se comportando como pombos costumam se comportar. Não estavam beliscando migalhas de sanduíches ou meneando a cabeça à procura de comida deixada pelos turistas. Estavam bem quietos, observando. Houve um rufar de asas, e a eles se juntou outra centena de pássaros, a maioria pousando sobre a estátua de um homem gordo com um chapéu enorme no centro da praça. Fat Charlie olhava para os pássaros, e os pássaros olhavam de volta.
— Então—, qual a pior coisa que pode acontecer? — perguntou a Spider, com voz baixa. — Eles fazerem cocô em cima da gente?
— Não sei. Mas acho que podem fazer coisa pior. Termine o seu chocolate quente.
— Mas está muito quente.
— Então a gente vai precisar de umas garrafinhas d’água, né? Garçon?
Um ruído baixo de asas batendo. Barulho de mais pássaros chegando. Por baixo de tudo, chilreios baixos, ocultos.
O garçom lhes trouxe as garrafas d’água. Spider, que mais uma vez usava sua jaqueta de couro preta e vermelha, colocou as garrafas nos bolsos.
— São apenas pombos — disse Fat Charlie, mas sabia que não era só isso. Não eram apenas pombos. Eram um exército. A estátua do homem gordo tinha quase desaparecido por baixo das penas cinzas e roxas. — Acho que eu preferia os pássaros antes de eles começarem a nos atacar — completou.
— E estão em todos os lugares. — Spider pegou a mão de Fat Charlie. — Feche os olhos.
Os pássaros ergueram-se como se fossem um único pássaro. Fat Charlie fechou os olhos.
Os pombos desceram sobre eles como uma matilha de lobos...
Fazia silêncio, como se estivessem num lugar distante. “Estou dentro de um forno”, pensou Fat Charlie. Abriu os olhos e se deu conta de que era isso mesmo — um forno com dunas vermelhas que iam até o horizonte, até sumirem de encontro ao céu cor de madrepérola.
— Um deserto — explicou Spider. — Pareceu uma boa idéia. Uma zona livre de pássaros. Um lugar para terminar a conversa.
Toma.
Deu a ele uma garrafa d’água.
— Obrigado.
— E então? Não quer me dizer de onde vieram os pássaros?
— De um lugar aí. Eu fui até lá. Tinha várias pessoas-animais lá. Eles... ahm... Todos conheciam o nosso pai. Uma delas era uma mulher, um tipo de mulher-pássaro.
Spider olhou para ele.
— “Um lugar aí”? Isso não ajuda muito.
— Lá tem uma montanha, e cavernas na montanha. E uns penhascos que dão para o nada. Como se fosse o fim do mundo.
— É o começo do mundo — corrigiu Spider. — Já ouvi falar nessas cavernas. Uma moça uma vez me contou tudo sobre elas. Mas nunca fui até lá. Então você encontrou a Mulher Pássaro e...?
— Ela se ofereceu para fazer você ir embora. E... ahm... Bem, eu aceitei a oferta dela.
— Isso foi uma coisa muito idiota de se fazer — comentou Spider, com seu sorriso de galã de cinema.
— Eu não disse a ela pra te machucar.
— E o que você achou que ela ia fazer pra se livrar de mim? Me mandar uma carta?
— Eu não sei. Não pensei nisso. Estava chateado.
— Ótimo. Bom, se ela fizer as coisas do jeito dela, você vai ficar chateado, e eu vou morrer. Você poderia simplesmente ter me pedido para ir embora, não?
— Mas eu pedi!
— Ahm-. E o que eu disse?
— Que você gostava da minha casa e não iria a lugar nenhum.
Spider bebeu um pouco da água.
— E o que você disse exatamente a ela?
Fat Charlie tentou se lembrar. Agora, pensando a respeito, parecia uma coisa estranha de se dizer.
— Só disse que daria a linhagem de Anansi para ela — respondeu, relutante.
— Você o quê?.
— Foi o que ela me pediu para dizer.
Spider parecia não acreditar no que ouvia.
— Mas isso não diz respeito só a mim. Diz respeito a mim e a você.
A boca de Fat Charlie ficou repentinamente seca. Ele tinha esperança de que fosse efeito do ar do deserto e tomou um gole d’água.
— Espere. Por que o deserto? — perguntou Fat Charlie.
— Eu já disse, não tem pássaros aqui.
— Então o que é aquilo?
Fat Charlie apontou. No começo, pareciam pequenos. Depois você se dava conta de que isso acontecia apenas porque estavam a uma grande altitude. Faziam círculos, batendo as asas.
— Abutres. Eles só atacam coisas mortas — argumentou Spider.
— Ah, claro. E pombos têm medo de gente.
Os pontos no céu começaram a fazer círculos mais baixos, e os pássaros pareciam crescer à medida que desciam.
— Entendi — disse Spider. — Merda.
Eles não estavam sozinhos. Alguém os observava de cima de uma duna ao longe. Um observador qualquer teria pensado se tratar de um espantalho.
— Vá embora! — gritou Fat Charlie. Sua voz foi amortecida pela areia. — Eu retiro o que eu disse! Nosso pacto não vale mais! Deixe a gente em paz!
Um sobretudo farfalhou no vento quente e, de repente, não havia ninguém sobre a duna.
— Ela foi embora! Quem diria que seria tão simples?
Spider tocou seu ombro e apontou adiante. Agora a mulher de casaco vermelho estava de pé sobre o montinho de areia mais próximo, tão perto deles que Fat Charlie podia ver seus olhos negros, que brilhavam como pedras polidas.
Os abutres fizeram sombras negras esfarrapadas sobre a areia e depois pousaram. Tinham o pescoço e o alto da cabeça vermelhos e sem penas, porque assim é muito mais fácil pôr a cabeça dentro de carcaças em putrefação. Estenderam o pescoço e ficaram olhando miopemente os irmãos, como se ponderassem se seria melhor esperar até morrerem ou se deveriam fazer algo para acelerar o processo.
— Havia algo mais no trato?
— Hã?
— Vocês combinaram mais alguma coisa? Ela deu alguma coisa a você para selar o acordo? Às vezes essas coisas são uma troca.