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Na verdade, existem até mesmo algumas maneiras pouco respeitáveis de morrer que não seriam tão ruins. Por exemplo, combustão espontânea. Os médicos dizem que é uma farsa, os cientistas dizem que é improvável. Ainda assim as pessoas persistem em morrer em chamas, deixando para trás nada além de uma mão tostada ainda segurando um cigarro por terminar. Fat Charlie leu a respeito da combustão espontânea numa revista. Ele não teria se importado se seu pai tivesse morrido assim. Ou mesmo se tivesse sofrido um ataque cardíaco correndo pela rua, perseguindo os homens que roubaram o dinheiro da sua cerveja.

O pai de Fat Charlie morreu assim.

Ele chegou ao bar cedo e começou a noite de karaokê cantando “What s New Pussycat?”, canção cantada bem alto, de acordo com a Sra. Higgler, que não estava no local. Cantou de um jeito que, se fosse Tom Jones, já estaria coberto de calcinhas jogadas pela platéia. Isso rendeu a ele uma cerveja de agradecimento, cortesia das várias turistas loiras de Michigan que o acharam a Coisinha mais fofa que já haviam visto na vida.

— Foi culpa delas — observou a Sra. Higgler, numa voz amarga.

— Elas encorajaram ele!

Eram mulheres que usavam tops tomara-que-caia apertados. Estavam todas vermelhas do sol por tentarem se bronzear rápido demais e tinham idade para ser filhas dele.

Não demorou para que ele se sentasse à mesa delas, fumando seus “charutos” e contando a lorota de que havia feito parte do Serviço de Inteligência do Exército durante a guerra, que ele tinha o cuidado de não dizer qual foi, e que podia matar um homem de várias maneiras diferentes com as próprias mãos, sem esforço nenhum.

Depois convidou a turista mais loira e mais peituda para dançar com ele enquanto uma das amigas dela cantava em falsete “Strangers in the Night” no palco. Ele parecia estar se divertindo muito, embora a turista fosse mais alta, fazendo com que seu sorriso ficasse na altura do busto dela.

Quando a dança terminou, ele anunciou que cantaria de novo. Aproveitando o fato de haver no mundo apenas uma coisa que você podia dizer com certeza a respeito dele — que ele não tinha nenhuma dúvida a respeito de sua heterossexualidade —, o pai de Fat Charlie cantou “I Am What I Am” para a platéia, especialmente para a turista mais loira na mesa, que estava logo abaixo dele. Deu tudo de si na música. Chegou ao ponto em que a letra explicava a todos os que ouviam que, pelo que ele sabia, sua vida não valia nada a não ser que pudesse dizer a todo mundo o que ele era. Foi quando fez uma cara esquisita, pressionou uma das mãos contra o peito, esticou a outra e tropeçou tão lenta e graciosamente quanto possível, caindo do palco improvisado até a turista mais loira, e depois dela para o chão.

— Era assim que ele sempre quis morrer — suspirou a Sra. Higgler.

Então ela contou a Fat Charlie como seu pai, com um gesto final, enquanto caía, esticou a mão e agarrou uma determinada coisa, que acabou sendo o top tomara-que-caia da turista loira, de modo que a princípio as pessoas pensaram que ele, dominado pela luxúria, apenas saltara do palco com o único propósito de expor os seios em questão. Lá estava ela, gritando, com os seios encarando a platéia, enquanto a música “I Am What I Am” continuava tocando, mas sem ninguém cantando junto.

Quando as pessoas se deram conta do que realmente acontecera, ficaram todas em silêncio por uns dois minutos. O pai de Fat Charlie foi carregado e colocado numa ambulância enquanto a turista loira tinha um ataque histérico no banheiro feminino.

Os seios eram o que Fat Charlie não conseguia tirar da cabeça. Ele fazia essa imagem mental em que os seios o perseguiam de um jeito acusatório pela sala, como os olhos de uma pessoa numa pintura. Continuava com aquela vontade de pedir desculpas a várias pessoas que nunca vira na vida. Saber que seu pai teria se divertido muitíssimo com a cena só fazia piorar sua mortificação. E muito pior quando você fica constrangido com uma coisa que nem mesmo presenciou: sua mente fica remoendo os acontecimentos, revirando tudo diversas vezes, examinando a situação de todos os ângulos. Bom, talvez a sua mente não seja assim, mas certamente a de Fat Charlie era.

Via de regra, Fat Charlie sentia o embaraço nos dentes e na boca do estômago. Se algo remotamente embaraçoso ameaçava aparecer na tela da televisão, ele dava um pulo e desligava o aparelho. Se isso não fosse possível, se outras pessoas estivessem presentes por exemplo, dava algum pretexto para sair da sala e esperava até ter certeza de que a cena embaraçosa tinha chegado ao final.

Fat Charlie morava no sul de Londres. Tinha chegado aos 10 anos de idade com um sotaque americano que era motivo de chacota incessante por parte das outras crianças. Ele se esforçou muito para perdê-lo, finalmente eliminando até a última consoante leve e os “Rs” enrolados enquanto aprendia o uso e o contexto corretos para a palavra innit[1].

Havia conseguido finalmente perder todo o seu sotaque americano quando completou 16 anos, na mesma época em que seus colegas descobriam que precisavam muito falar como se viessem do gueto. Logo todos eles (com exceção de Fat Charlie) falavam como pessoas que gostariam de imitar a maneira como Fat Charlie falava quando veio para a Inglaterra. Mas ele nunca poderia usar aquele linguajar em público sem que sua mãe lhe desse um tabefe na orelha.

Era tudo uma questão de como usar a voz.

Assim que a vergonha que sentia em relação à morte do pai começou a sumir, Fat Charlie sentiu-se apenas vazio.

— Eu não tenho família — disse a Rosie de um jeito quase orgulhoso.

— Você tem a mim — respondeu ela. Isso fez Fat Charlie sorrir. — E também a minha mãe — acrescentou, fazendo o sorriso de Charlie ficar pela metade. Deu-lhe um beijo na bochecha.

— Você podia passar a noite aqui — sugeriu ele. — Para me consolar e tal.

— Eu poderia — concordou ela —, mas não vou.

Rosie só dormiria com Fat Charlie depois do casamento. Dizia que era uma decisão sua, que tomara quando tinha 15 anos de idade. Ela não conhecia Fat Charlie na época, mas era o que tinha decidido. Então o abraçou mais uma vez, um longo abraço, e disse:

— Sabe, você precisa fazer as pazes com o seu pai.

Depois foi para casa.

Ele teve uma noite inquieta, dormindo um pouco, acordando, pensando e depois dormindo novamente.

Acordou com o nascer do sol. Quando as pessoas estivessem a caminho do trabalho, ele ligaria para a agência de viagens e perguntaria a respeito de descontos na passagem para a Flórida em caso de morte de um membro da família. Depois ligaria para a Agência Grahame Coats e diria que, em virtude de uma morte na família, teria que tirar uns dias de licença e que, sim, sabia que isso seria descontado dos seus dias reservados para faltas por motivo de doença ou de seu período de férias. Mas por enquanto se sentia satisfeito porque o mundo estava calmo.

Seguiu o corredor até o pequeno quarto extra no fundo da casa e observou o jardim lá embaixo. A movimentação do amanhecer já havia começado, e ele podia ver pássaros: melros, pequenos pardais saltitando pela cerca viva e um único tordo, de peito pintado, nos galhos de uma árvore próxima. Fat Charlie pensou que um mundo em que pássaros cantavam de manhã era um mundo normal, sensato, e não achava nada mau fazer parte desse mundo.

Tempos depois, quando pássaros seriam algo a temer, Fat Charlie ainda se lembraria daquela manhã como algo belo e agradável, mas também como o momento em que tudo começou. O momento antes da loucura, antes do medo.

2

O qual basicamente discorre sobre as coisas que acontecem após os funerais

Fat Charlie bufava pelo jardim memorial do repouso, com os olhos meio fechados por causa do sol da Flórida. Marcas de suor se espalhavam pelo seu terno, começando nas axilas e no peito. O suor começou a pingar de seu rosto à medida que corria.

O Jardim Memorial do Repouso de fato parecia um jardim, mas um jardim bastante estranho, no qual as flores eram artificiais e cresciam em vasos metálicos que saíam de placas metálicas colocadas no chão. Fat Charlie passou correndo por uma placa: “Cova GRÁTIS para todos os veteranos de guerra com medalhas de honra!” Correu através da Terra dos Bebês, onde havia as covas infantis e onde cata-ventos multicoloridos e ursinhos de pelúcia encharcados nas cores rosa e azul faziam companhia às flores artificiais sobre a grama da Flórida. Um ursinho Pooh em decomposição lançava um olhar meio morto para o céu azul.

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Isn’t it contração usada coloquialmente pelos britânicos para dar ênfase a frases ou perguntas. (N. E.).