Выбрать главу

Os abutres avançavam, um passo de cada vez, cada vez mais perto, cercando-os. Havia mais sombras negras no céu, crescendo, voando na direção deles. A mão de Spider agarrou a de Fat Charlie.

— Feche os olhos.

O frio atingiu Fat Charlie como um soco no estômago. Respirou fundo e sentiu como se o gelo invadisse seus pulmões. Tossiu e tossiu, e o vento uivava como um lobo.

Abriu os olhos.

— Posso saber onde estamos desta vez?

— Antártida — respondeu Spider. Fechou o zíper da sua jaqueta de couro e não parecia se incomodar com o frio. — Acho que está meio friozinho aqui.

— Você não tem meio-termo? Direto do deserto para o gelo?

— Não tem pássaros aqui.

— Não seria mais fácil ficar dentro de um prédio seguro, sem pássaros? A gente poderia almoçar.

— Tá. Agora você vai começar a reclamar. Só porque está meio friozinho.

— Não está “friozinho”. Deve estar uns 40 abaixo de zero. De qualquer maneira, dá uma olhada ali. — Fat Charlie apontou para o alto. Uma onda pálida, como se fosse uma letra “m” em miniatura escrita a giz no céu, permanecia imóvel, pairando no ar frio.

— Um albatroz — disse.

— E uma fragata — respondeu Spider.

— Como?

— Não é um albatroz. É uma fragata. Talvez ela nem tenha nos notado.

— Talvez não, mas eles notaram.

Spider virou-se e disse algo que parecia um palavrão. Talvez não houvesse 1 milhão de pingüins rebolando, deslizando e escorregando de barriga na direção dos irmãos, mas sem dúvida essa parecia a quantidade. Como regra geral, as únicas coisas que ficam aterrorizadas com a aproximação de pingüins são pequenos peixes, mas quando há um número enorme de pingüins...

Fat Charlie segurou a mão de Spider sem que ele pedisse. Fechou os olhos.

Quando os abriu novamente, estava em algum lugar mais quente, embora abrir os olhos não fizesse nenhuma diferença. Tudo tinha a cor da noite.

— Eu fiquei cego? — perguntou.

— Estamos numa mina de carvão desativada. Vi uma foto desse lugar numa revista há alguns anos. A não ser que aqui existam bandos de pássaros cegos que se adaptaram à escuridão e que comem carvão, nós ficaremos bem.

— Você está brincando, certo? Sobre essa coisa aí de pássaros cegos?

— Mais ou menos.

Fat Charlie soltou um suspiro, que ecoou pela caverna subterrânea.

— Sabe, se você apenas tivesse ido embora, se tivesse ido embora da minha casa quando eu pedi, nós não estaríamos nessa confusão toda.

— Dizer isso não ajuda muito.

— As coisas não deveriam acontecer assim. Sabe-se lá como vou explicar tudo para a Rosie.

Spider pigarreou e disse:

— Acho que você não precisa mais se preocupar com isso.

— Por quê?

— Ela terminou com a gente.

Houve um longo silêncio. Depois Fat Charlie disse:

— Mas é claro que terminou.

— Eu acho que acabei me atrapalhando um pouco com essas coisas.

Ao dizer isso, Spider soava transtornado.

— Mas e se eu explicar pra ela? Quer dizer, se eu falar que eu não era você, que você estava fingindo ser eu...

— Eu já fiz isso. Foi aí que ela decidiu que não queria ver nenhum de nós dois nunca mais.

— Eu também?

— Receio que sim. Olha, eu nunca quis... Quer dizer, quando fui visitar você, só queria dizer “oi” e tal. Não queria— Ahm... Eu estraguei tudo, não foi?

— Você está tentando me pedir desculpas?

Silêncio.

— Acho que sim. Talvez.

Mais silêncio.

— Bom, então eu também peço desculpas por pedir pra Mulher Pássaro que se livrasse de você.

O fato de não poder enxergar Spider enquanto conversavam tornava as coisas mais fáceis, de certo modo.

— Tá. Tudo bem. Eu só queria saber como me livrar dela.

— A pena ! — lembrou-se Fat Charlie.

— Hã?

— Você perguntou se ela me deu alguma coisa para selar o pacto. Ela deu. Ela me deu uma pena.

— E onde ela está?

Fat Charlie tentou se lembrar.

— Não tenho certeza. Eu estava com ela quando acordei na sala da Sra. Dunwiddy. Mas não estava mais comigo quando entrei no avião. Suponho que a Sra. Dunwiddy ainda esteja com ela.

O silêncio que se seguiu foi longo, escuro, ininterrupto. Fat Charlie começou a se preocupar, a pensar se Spider havia ido embora e o abandonado naquela escuridão embaixo da terra. Finalmente disse:

— Você ainda está aí?

— Ainda aqui.

— Que alívio. Se você me abandonasse aqui embaixo, eu não saberia como sair.

— Não me dê idéias.

Mais silêncio.

— Em que país estamos?

— Polônia, acho. Como eu disse, vi a foto desse lugar. Só que na foto havia luz.

— Você precisa ver a foto de um lugar antes de ir pra lá?

— Preciso saber onde fica.

Fat Charlie ficou pensando no quanto era impressionante o silêncio dentro da mina. O lugar tinha um silêncio especial, todo seu. Começou a pensar sobre silêncios. Será que o silêncio dentro do túmulo era diferente do silêncio, digamos, do espaço sideral?

E Spider disse:

— Eu me lembro da Sra. Dunwiddy. Ela cheira a violeta. — Muita gente já disse a frase “Já era, nós vamos morrer” com mais entusiasmo.

— Isso mesmo. Pequenininha, bem velhinha. Óculos bem grossos. Acho que a gente precisa ir lá e pegar a pena com ela. Aí nós damos a pena de volta para a Mulher Pássaro. E então ela acaba com esse pesadelo.

Fat Charlie bebeu o resto da garrafinha d’água que havia trazido para lá de uma pequena praça, em algum lugar que não era a Itália. Colocou de novo a tampa na garrafa e pôs a garrafa vazia no chão, na escuridão, pensando se aquilo poderia ser considerado jogar lixo em lugar proibido, já que ninguém jamais veria a garrafinha.

— Então vamos nos dar as mãos e ver a Sra. Dunwiddy — sugeriu Fat Charlie.

Spider soltou um ruído. Não parecia o som de alguém corajoso, mas de alguém temeroso, desconfiado. Fat Charlie imaginou Spider murchando na escuridão, como um sapo ou um balão cheio havia uma semana. Fat Charlie queria que Spider descesse um pouquinho de seu pedestal. Mas não queria ouvi-lo fazer o som que uma criança de 6 anos morta de medo faria.

— Espere aí. Você está com medo da Sra. Dunwiddy?

— Eu eu não consigo chegar perto dela.

— Bom, se serve de consolo, eu também tinha medo dela quando era criança. Quando a encontrei de novo, no funeral, ela não parecia assim tão má. Não mesmo. É só uma velhinha.

Lembrou-se dela acendendo as velas pretas e colocando as ervas na vasilha.

— Talvez um pouco estranha. Mas, quando você encontrar com ela, vai dar tudo certo.

— Foi ela que me fez ir embora. Eu não queria. Mas quebrei aquela bola do jardim dela. Uma bola de vidro bem grande, como se fosse uma bola gigante de árvore de Natal.

— Eu também fiz isso. Ela ficou bem chateada.

— Eu sei. — A voz no escuro soava pequena, confusa, preocupada. — Aconteceu ao mesmo tempo. Foi quando tudo começou.

— Bom... Olha... Não é o fim do mundo. Você me leva até a Flórida, eu vou e pego a pena de volta com a Sra. Dunwiddy. Eu não tenho medo. Você pode ficar do lado de fora.

— Eu não posso. Não posso ir até onde ela está.

— O que está querendo dizer? Que ela criou algum tipo de medida cautelar mágica que impede você de chegar perto?

— Mais ou menos. Sim. — Então Spider disse: — Sinto falta da Rosie. Me desculpe por ter. Você sabe.

Fat Charlie pensou em Rosie. Teve grande dificuldade de lembrar do rosto dela. Pensou como seria não ter a mãe de Rosie como sua sogra. Pensou nas duas silhuetas que viu através da cortina na janela do seu quarto. E então disse:

— Não se sinta mal por isso. Quer dizer, pode se sentir culpado se quiser, porque você se comportou como um grandessíssimo filho-da-mãe. Mas talvez tudo tenha acontecido por uma razão.