Fat Charlie sentiu uma pontada onde ficava seu coração, mas sabia que estava falando a verdade. E mais fácil dizer verdades no escuro.
— Sabe o que não faz sentido?
— Tudo?
— Não. Só uma coisa. Eu não entendo por que a Mulher Pássaro se envolveu nisso. Não faz sentido.
— O nosso pai a deixou fula da vida...
— O papai deixava todo mundo fulo da vida. Mas ela está errada. Se quer matar a gente, por que simplesmente não tenta?
— Eu dei a ela a nossa linhagem.
— Foi o que você disse. Mas não, tem alguma outra coisa por trás disso. E eu não entendo o que é. Silêncio. — E Spider continuou: — Segure a minha mão.
— Preciso fechar os olhos?
— Seria bom.
— Para onde vamos? Pra Lua?
— Vou levar você a um lugar seguro.
— Que bom. Eu gosto de lugares seguros. Para onde?
Então, sem precisar abrir os olhos, Fat Charlie soube. O cheiro entregava: pessoas sem tomar banho, privadas usadas sem dar descarga, desinfetante, cobertores velhos, apatia.
— Aposto que eu me sentiria igualmente seguro num quarto de algum hotel de luxo — disse em voz alta, mas não havia ninguém ali para ouvir. Sentou-se sobre a cama-prateleira da cela seis e cobriu os ombros com o cobertor fino. Sentia como se estivesse lá havia milênios.
Meia hora depois, alguém veio até sua cela e o levou para a sala de interrogatório.
— Oi — disse Daisy, com um sorriso. — Aceita um chá?
— Não precisa se preocupar. Eu vi filmes. Sei como é. Aquela coisa do policial malvado e do policial bonzinho, não é? Você me oferece uma xícara de chá e uns bolinhos, aí um sujeito grandalhão, durão e nervosão entra e começa a gritar comigo, a derramar o chá, a comer os meus bolinhos. Aí você o impede de me bater e devolve o meu chá e os bolinhos. Como símbolo de gratidão, eu digo a você tudo o que quer saber.
— A gente pode pular essa parte e você pode simplesmente me dizer o que queremos saber. De qualquer forma, não temos bolinhos.
— Eu já disse tudo o que sei. Tudo. Grahame Coats me deu um cheque no valor de 2 mil libras e me mandou tirar duas semanas de folga. Disse que ficara feliz por eu ter chamado sua atenção para algumas irregularidades financeiras. Aí pediu a minha senha e se despediu de mim. Fim da história.
— E você afirma que não sabe de nada sobre o desaparecimento de Maeve Livingstone?
— Acho que nunca falei direito com ela. Talvez uma vez, quando ela foi até o escritório. Nós nos falamos pelo telefone algumas vezes. Ela sempre queria falar com Grahame Coats. E ele sempre me dizia para dizer a ela que o cheque tinha sido enviado.
— E tinha sido?
— Não sei. Eu achava que sim. Olha, não é possível que você ache que eu tenho algo a ver com o desaparecimento dela.
— Não — respondeu ela num tom alegre. — Não acho.
— Porque honestamente eu não sei o que pode ter— você não acha o quê?
— Não acho que você tenha algo a ver com o desaparecimento de Maeve Livingstone. Também acredito que você não tem nada a ver com as irregularidades financeiras da Agência Grahame Coats, embora alguém tenha se esforçado bastante para fazer parecer que você tem algo a ver com isso. Para mim, é bem óbvio que as práticas contábeis bizarras e o desvio constante de dinheiro já aconteciam antes de você chegar à agência. Você só trabalha lá há dois anos.
— Mais ou menos isso — concordou Fat Charlie, e deu-se conta de que sua boca estava aberta. Fechou a boca.
— Olha, eu sei que os tiras, nos livros e nos filmes, costumam ser idiotas, principalmente se for aquele tipo de livro com um policial aposentado que combate o crime ou um detetive certinho. Peço desculpas por não podermos oferecer bolinhos. Mas nós, os policiais, não somos completamente imbecis.
— Mas eu não disse que eram.
— Não. Mas era o que estava pensando. Você está livre. Se for preciso, nos nós desculpamos.
— Onde foi que ela.. ahm... desapareceu?
— A Sra. Livingstone? Bom, na última vez que foi vista, estava acompanhando Grahame Coats até o escritório dele.
— Ah.
— Eu estava falando sério quando ofereci o chá. Aceita uma xícara?
— Sim. Obrigado. Ahm... Imagino que vocês já verificaram a salinha secreta no escritório dele. Aquela que fica atrás da estante.
— Acho que não...
Temos que dar crédito a Daisy por ter dito essa frase totalmente calma.
— Acho que ele não queria que ninguém soubesse dessa salinha, mas uma vez eu entrei lá no escritório e ele tinha empurrado a estante, e estava lá dentro. Aí eu saí. Eu não estava espionando nem nada do tipo.
— A gente pode comprar uns bolinhos a caminho do escritório — respondeu Daisy.
Fat Charlie nâo sabia ao certo se gostava da liberdade.
Afinal, significava estar ao ar livre.
— Tudo bem com você? — perguntou Daisy.
— Tudo bem.
— Você parece meio nervoso.
— Acho que sim. Talvez você ache isso bobo, mas eu tenho um pouco de... Bom, eu tenho essa coisa com pássaros.
— O quê, uma fobia?
— Tipo isso.
— Bom, qual é mesmo o termo usado para um medo irracional de aves...
— E qual seria o termo para um medo racional de aves?
Ele deu uma pequena mordida em seu bolinho.
Ficaram em silêncio, e Daisy finalmente disse:
— Bom... De qualquer forma, não tem nenhum pássaro aqui no carro.
Ela estacionou em um lugar proibido, perto da Agência Grahame Coats, e os dois entraram no prédio juntos.
Rosie estava deitada ao sol, perto da piscina, no deque de popa de um navio de cruzeiro coreano, com uma revista sobre a cabeça e sua mãe ao lado, tentando lembrar por que diabos tinha pensado que tirar férias com a mãe fosse uma boa idéia. O navio se chamava Sunny Archipelago (“Arquipélago Ensolarado”) até que um ataque de gripe estomacal tomasse conta do navio e chegasse ao noticiário internacional. Uma tentativa mal pensada de renomeá-lo sem mudar as iniciais, feita pelo capitão, que não falava inglês tão bem quanto imaginava, deixou o navio com o adorável nome de Squeak Attack (“O Ataque dos Ratos”).
Não havia jornais ingleses no navio, e Rosie não sentia nenhuma falta deles. Mas sentia falta de todo o resto. Em sua mente, fazer um cruzeiro era como passar por um purgatório flutuante, tolerável apenas pelas ilhas que visitavam diariamente, ou quase. Os outros passageiros desciam e faziam compras, ou então praticavam “parasail”, ou então enchiam a cara de rum ao fazer visitas turísticas a navios piratas. Rosie, por sua vez, gostava de andar e conversar com as pessoas.
Ela via pessoas com problemas, pessoas que pareciam famintas, miseráveis, e queria ajudar. Tudo parecia solucionável para Rosie. Bastava alguém para resolver a situação.
Maeve Livingstone esperava que a morte fosse um monte de coisas diferentes, mas irritante nunca passara por sua cabeça. E ela estava irritada, cansada de andarem através dela, cansada de ser ignorada e, acima de tudo, cansada de não conseguir sair do prédio de escritórios em Aldwych.
— Quer dizer, se eu preciso assombrar um lugar — dizia à recepcionista —, por que não posso assombrar Somerset House, subindo a rua? Um prédio bonito, uma vista maravilhosa do Tâmisa, traços arquitetônicos dignos de nota. Há uns restaurantezinhos ótimos também. Mesmo que a gente não precise mais comer, seria legal ficar observando as pessoas.
Annie, a recepcionista, cujo trabalho desde o desaparecimento de Grahame Coats se resumia a atender ao telefone com voz entediada e dizer “Infelizmente não sei informar” para praticamente todas as perguntas que lhe faziam e que, quando não desempenhava esse trabalho, ligava para as amigas para falar sobre o mistério, com sussurros animados, não respondeu ao que Maeve lhe dizia, assim como não respondera a nada que ela lhe dissera antes.
A monotonia foi quebrada pela chegada de Fat Charlie Nancy, acompanhado de uma policial.