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Maeve sempre tivera certo apreço por Fat Charlie, mesmo quando sua função consistia em assegurar-lhe que o cheque logo seria enviado. Mas agora ela via coisas que nunca fora capaz: havia sombras que pairavam ao redor dele, sempre à distância. Um sinal de coisas ruins prestes a acontecer. Parecia um homem que fugia de alguma coisa, e isso a preocupou.

Ela os seguiu até o escritório de Grahame Coats e adorou quando viu que Fat Charlie foi direto na direção da estante de livros no fundo da sala.

— Então essa é a passagem secreta? — perguntou Daisy.

— Não é uma passagem secreta. É uma porta. Por trás da estante de livros, aqui. Eu não sei. Talvez exista uma alavanca secreta ou coisa do tipo.

Daisy olhou para a estante.

— O Grahame Coats já escreveu uma autobiografia? — perguntou a Fat Charlie.

— Não que eu saiba.

Ela empurrou a edição encadernada em couro do livro My Life by Grahame Coats. Ouviu-se um clique, e a estante afastou-se da parede, revelando uma porta trancada.

— Precisaremos de um chaveiro. E acho que não precisamos mais do senhor, sr. Nancy.

— Certo. Bom— foi— ahm— um prazer. — Então ele disse: — Será que você não gostaria de— sair para comer alguma coisa— comigo— um dia desses?

— Dim sum — respondeu ela. — Domingo, hora do almoço. A gente divide a conta. Você precisa estar lá quando abrirem as portas, às 1 lh30, senão a gente vai ter que esperar na fila por horas. — Escreveu o endereço do restaurante e entregou a Fat Charlie. — Tome cuidado com os pássaros no caminho de casa — aconselhou.

— Pode deixar. Até domingo.

O chaveiro desdobrou uma bolsa de tecido preto e tirou de lá vários instrumentos metálicos finos. Enquanto trabalhava, comentou:

— Sinceramente, eles nunca aprendem. Uma fechadura boa nem mesmo é cara. Quer dizer, olha só essa porta: uma maravilha. Muito sólida. Levaria metade de um dia para atravessá-la com um maçarico. Aí eles decepcionam colocando uma fechadura que uma criança de 5 anos conseguiria abrir com uma faca— Prontinho— Fácil como tirar doce de criança.

O chaveiro empurrou a porta. A porta abriu, e viram aquela coisa no chão.

— Deus do céu! — exclamou Maeve Livingstone. — Essa aí não sou eu.

Ela achou que teria mais afeição por seu corpo, mas não tinha. Parecia um animal morto em uma rodovia.

Logo a sala estava cheia de gente. Maeve, que nunca tivera muita paciência para draminhas de detetive, ficou logo entediada. Só se interessou pelo que acontecia quando sentiu que estava sendo empurrada, sem sombra de dúvida, para o térreo, e daí pela porta da frente, à medida que seu cadáver era levado, envolto em plástico azul discreto.

— Agora sim — disse.

Conseguiu sair.

Pelo menos tinha conseguido sair do prédio de escritórios em Aldwych.

Ela sabia que obviamente havia regras. Tinha que haver. O problema é que não tinha muita certeza de que regras eram essas.

Desejou ter sido mais religiosa em vida, mas nunca conseguira: quando era menina, não conseguia imaginar um Deus que detestasse alguém a ponto de sentenciar a pessoa a passar a eternidade sendo torturada no Inferno, em grande parte por não conseguir acreditar em Sua existência. Depois de crescida, suas dúvidas de infância se solidificaram na firme certeza de que a Vida, desde o nascimento até a morte, era tudo o que havia, e que todo o resto não passava de fruto da nossa imaginação. Era uma boa crença, que a permitiu levar a vida, mas agora se punha à prova.

Ela realmente não tinha certeza de que passar a vida indo à igreja certa a teria preparado para isso. Maeve rapidamente chegava à conclusão de que, num mundo bem organizado, a Morte deveria ser como férias de luxo, com todas as despesas pagas, daquelas em que você ganha um folheto no começo, cheio de ingressos para shows, cupons de desconto, programação e diversos números de telefone para os quais poderia ligar caso tivesse problemas.

Ela não andava. Ela não voava. Ela se movia como o vento, como um vento frio de outono que fazia as pessoas se arrepiarem quando passava, que remexia de leve as folhas caídas nas calçadas.

Dirigiu-se ao primeiro lugar em que esteve ao chegar a Londres: Selfridges, a loja de departamentos na Oxford Street. Maeve trabalhara na seção de cosméticos da Selfridges quando era bem mais jovem, na época em que tinha empregos temporários como dançarina. Ela fazia questão de voltar lá sempre que podia para comprar produtos de maquiagem caros, como havia prometido a si mesma que faria.

Assombrou a seção de cosméticos até ficar entediada. Então resolveu dar uma olhada na parte de decoração. Ela não compraria uma nova mesa de jantar, mas que mal havia em dar uma olhadinha?

Passou pela seção de eletrônicos, cercada de telas de TV de todos os tamanhos. Algumas mostravam o noticiário. Todos os aparelhos estavam sem som, mas quem aparecia na tela era Grahame Coats. A repugnância surgiu dentro dela, queimando como se fosse lava. A imagem mudou e, agora ela via a si mesma: um clipe de imagens dela ao lado de Morris. Reconheceu a cena como o esquete “Give me a fiver and I ll snog you rotten”, de Morris Livingstone, I Presume.

Desejou arranjar um meio de recarregar o telefone. Mesmo se a única pessoa com que pudesse falar fosse aquela voz irritante, que parecia a de um pastor, ainda assim ela conversaria. Na verdade, queria falar com Morris. Ele saberia o que fazer. Desta vez conversaria com ele. Desta vez ouviria.

— Maeve?

O rosto de Morris, dentro de centenas de telas de TV, a observava. Por um instante, pensou ser apenas sua imaginação, ou então parte do noticiário. No entanto ele a olhava preocupado, e disse o nome dela mais uma vez. Então ela soube que era ele mesmo.

— Morris..?

Ele sorriu seu famoso sorriso. Cada rosto nas telas focalizou-se nela.

— Oi, querida. Eu já estava imaginando por que você demorou tanto para vir pro lado de cá.

— Lado de cá?

— O outro lado. O vale do além. Ou talvez aquém. Sei lá, essa coisa aí.

Ele estendeu uma centena de mãos, de centenas de telas de TV. Ela sabia que tudo o que precisava fazer era estender sua mão e pegar a mão dele. E se surpreendeu dizendo:

— Não, Morris. Melhor não.

Os inúmeros rostos pareceram perplexos.

— Maeve, meu amor. Você precisa esquecer o mundo material.

— Sim, claro que sim, querido. E vou. Prometo. Assim que estiver pronta.

— Maeve, você está morta. Não dá para estar mais pronta do que isso.

Ela suspirou.

— Ainda preciso fazer umas coisinhas.

— Por exemplo?

Maeve ficou bem ereta.

— Bom— Andei pensando naquela criatura, o Grahame Coats, e... Bom, vou fazer o que os fantasmas fazem. Eu poderia assombrá-lo, ou coisa do tipo.

Morris pareceu um pouco incrédulo:

— Você quer assombrar Grahame Coats? Mas por quê?

— Por que ainda não estou pronta.

Disse isso e ficou com os lábios comprimidos, o queixo erguido.

Morris Livingstone olhou para ela de dentro de uma centena de televisores e balançou a cabeça, numa mistura de admiração e exasperação. Ele se casara com ela porque era uma mulher dona de si, e a amava por isso, mas desejava poder, ao menos uma vez, persuadi-la. Em vez disso, falou:

— Bom, estarei te esperando, meu bem. Avise quando estiver pronta.

E Morris começou a desaparecer.

— Morris, você tem alguma idéia de como eu faço para encontrá-lo?

Porém a imagem de seu marido havia desaparecido completamente. Agora os televisores mostravam o canal do tempo.

Fat Charlie encontrou-se com Daisy no domingo para comer dim sum num restaurante mal iluminado, na pequena Chinatown de Londres.

— Você está bonita — disse ele.

— Obrigada. Estou me sentindo péssima. Me tiraram do caso Grahame Coats. Agora é uma investigação grandiosa de assassinato. Imagino que eu tenha que dar graças aos céus por ter ficado esse tempo todo com o caso.