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— Você também!

— Não, eles não querem você. Ainda não — disse Spider, e sorriu.

Era um sorriso que tinha, em outras oportunidades, persuadido mais pessoas do que é possível imaginar a fazer coisas que não queriam fazer, e Fat Charlie realmente quis correr. — Pegue a pena. Fale com o papai também se achar que ele ainda está por aí. Mas vá logo.

Fat Charlie saiu correndo.

A parede de pássaros ondulava, transformava-se e virou um redemoinho de pássaros que voava na direção da estátua de Eros e do homem embaixo dela. Fat Charlie entrou em algum lugar e observou enquanto a base daquele furacão escuro atingia Spider. Imaginou que podia ouvir os gritos de seu irmão por baixo do barulho ensurdecedor das asas. Talvez pudesse.

Então os pássaros se dispersaram, e a rua estava vazia. O vento brincou com algumas penas sobre a calçada cinzenta.

Fat Charlie ficou ali, de pé, e sentiu-se enjoado. Se algum dos transeuntes havia notado o que aconteceu, não esboçou nenhuma reação. De alguma maneira, tinha certeza de que ninguém além dele vira aquilo.

Havia uma mulher em pé, embaixo da estátua, perto de onde seu irmão estava. Seu casaco velho e marrom ondulava ao vento. Fat Charlie foi até ela.

— Olha, quando eu disse para fazê-lo ir embora, só queria que você o tirasse da minha vida. E não que fizesse seja lá o que você fez com ele.

Ela olhou para ele e não disse nada. Há uma certa loucura nos olhos de algumas aves de rapina, uma ferocidade extremamente assustadora. Fat Charlie tentou não ficar intimidado.

— Eu cometi um erro — continuou Fat Charlie. — E estou disposto a pagar por ele. Me leve no lugar dele. Traga-o de volta.

Ela continuava a olhar para ele. Então disse:

— Não duvide, chegará a sua vez, filho de Compé Anansi. Na hora certa.

— Por que você o quer?

— Eu não o quero. Por que iria querê-lo? Era uma obrigação que eu tinha para com outra pessoa. Agora vou entregá-lo, e minha obrigação não existirá mais.

O jornal balançou ao vento. Fat Charlie estava sozinho.

11

No qual Rosie aprende a dizer náo a estranhos e Fat Charlie adquire um limão

Fat Charlie olhou para o túmulo de seu pai.

— Você está aí? Se estiver, saia. Preciso falar com você. Caminhou até a marcação do túmulo e olhou para baixo. Fat Charlie não sabia ao certo o que esperar — que uma mão brotasse do solo, talvez, erguendo-se e agarrando sua perna —, mas nada parecia prestes a acontecer.

Ele tivera tanta certeza.

Fat Charlie voltou pelo Jardim do Repouso sentindo-se estúpido como um participante de show programa de TV que tivesse apostado seu milhão de dólares na afirmação de que o Mississipi era mais extenso que o Amazonas. Ele já devia ter desconfiado. O pai estava morto, tão morto quanto um bicho atropelado na estrada. Ele gastou o dinheiro de Spider numa busca inútil. Perto dos cata-ventos da Babyland, Fat Charlie sentou-se e chorou. Os brinquedos embolorados lhe pareceram ainda mais tristes e solitários do que se lembrava.

Ela o esperava no estacionamento, encostada no carro, fumando um cigarro. Parecia perturbada.

— Olá, Sra. Bustamonte — cumprimentou Fat Charlie.

Ela tragou uma última vez, jogou o cigarro no asfalto e o esmagou sob a sola do sapato baixo. Estava vestida de preto. Parecia cansada.

— Olá, Charles.

— Eu achava que, se fosse encontrar alguém aqui, seria a Sra. Higgler. Ou a Sra. Dunwiddy.

— Callyanne foi embora. A Sra. Dunwiddy me mandou. Ela quer ver você.

“Que nem a máfia”, pensou Fat Charlie. “Máfia no pós-menopausa.”

— Ela vai me fazer uma oferta irrecusável?

— Duvido muito. Ela não anda muito bem.

— Ah.

Fat Charlie entrou em seu carro alugado e seguiu o Camry da Sra. Bustamonte pelas ruas da Flórida. Tivera tanta certeza quanto a seu pai. Certeza de que o encontraria vivo. Claro que ele o ajudaria...

Estacionaram em frente à casa da Sra. Dunwiddy. Fat Charlie olhou para o quintal, para os desbotados flamingos de plástico, os gnomos e a bola decorativa espelhada e vermelha em cima de um pequeno pedestal de concreto, como se fosse uma enorme decoração de árvore de Natal. Ele caminhou em direção à bola, que era igual à que ele havia quebrado quando ainda era criança, e viu a si mesmo, distorcido, encarando-se de volta.

— Pra que serve? — perguntou.

— Pra nada. Ela só gostou.

Dentro da casa, o cheiro de violetas pairava espesso e sufocante. A tia-avó de Fat Charlie, Alanna, sempre mantinha um tubo de balinhas de violeta em sua bolsa. Mesmo tendo sido um guri gorducho e louco por açúcar, Fat Charlie só recorria àquele doce quando não havia nenhum outro. O cheiro da casa lembrava o gosto daqueles doces. Fat Charlie não pensava em violetas havia 20 anos. Ele se perguntou se ainda fabricavam aquilo, e o que teria levado alguém a criar o doce para começo de conversa.

— Ela está no quarto ao final do corredor — disse a Sra. Bustamonte, parando e apontando. Fat Charlie entrou no quarto da Sra. Dunwiddy.

Não era uma cama grande, mas a Sra. Dunwiddy deitada ali parecia uma boneca gigante. Ela estava de óculos e, por cima deles, usava o que Fat Charlie reconhecia como a primeira touca de dormir que via na vida, uma Coisinha do tipo vovó-toma-chá-com-biscoitos, já amarelada, com rendinha na borda. Ela estava recostada numa montanha de travesseiros, boca aberta, e roncava suavemente quando ele entrou.

Ele tossiu.

A Sra. Dunwiddy ergueu a cabeça de súbito, abriu os olhos e o encarou. Apontou para o criado-mudo ao lado da cama. Fat Charlie apanhou o copo d’água que ali estava e o passou para ela. Ela segurou o copo com as duas mãos, como um esquilo segura uma noz, e sorveu um bom gole antes de devolvê-lo.

— Minha boca fica seca. Você sabe quantos anos eu tenho?

— Ahm.

Fat Charlie preferiu não arriscar uma resposta errada.

— Não.

— Tenho 104 anos.

— Fantástico. A senhora parece tão bem. Sério, acho maravilhoso...

— Cale-se, Fat Charlie.

— Desculpe.

— Também não diga “desculpe” desse jeito, como se fosse um cachorro que recebeu bronca por sujar o tapete da cozinha. Erga a cabeça. Olhe o mundo nos olhos. Tá entendendo?

— Sim. Desculpe. Digo., sim, senhora.

Ela suspirou.

— Querem me levar pro hospital. Eu digo que quando você chega aos 104 tem o direito de morrer na própria cama. Fiquei grávida nesta cama, muito tempo atrás, e tive filhos aqui. De jeito nenhum vou morrer em outro lugar. E outra..

Ela parou de falar, fechou os olhos e deu um suspiro longo e profundo. Quando Fat Charlie já começava a achar que ela estava dormindo, os olhos da Sra. Dunwiddy se abriram e ela disse:

— Fat Charlie, se alguém um dia perguntar se você quer viver até 104 anos, diga que não. Dói tudo. Tudo. Dói em lugares que ainda nem descobriram.

— Vou tentar me lembrar.

— E não me responda.

Fat Charlie ficou olhando pra pequena mulher em sua cama branca de madeira.

— Devo pedir desculpas? — perguntou.

A Sra. Dunwiddy desviou o olhar, sentindo-se meio culpada.

— Eu fiz mal a você. Muito tempo atrás, eu fiz mal a você.

— Eu sei.

A Sra. Dunwiddy podia estar à beira da morte, mas ainda fitou Fat Charlie de um jeito que teria feito crianças de 5 anos correrem gritando pelas mães.

— Como assim, você sabe?

— Eu deduzi. Não tudo, provavelmente, mas alguma coisa. Não sou burro.

Ela o examinou friamente através do grosso vidro dos óculos e então disse:

— Não. Não é. Isso é verdade.

Ela estendeu a mão nodosa.

— Me dê mais água. Assim é melhor.

Ela bebeu, mergulhando a língua pequena e roxa na água. Continuou a falar.

— É bom que você esteja aqui hoje. Amanhã a casa inteira vai estar cheia de netos e bisnetos chorando, todos querendo que eu vá morrer no hospital, me agradando para ganhar alguma coisa. Eles não me conhecem. Eu vivi mais que os meus filhos. Cada um deles.