— A senhora vai me contar sobre o mal que me fez?
— Você não devia ter quebrado meu globo de vidro.
— Claro que não.
Ele se lembrava do ocorrido, da maneira como recordamos episódios da infância — em parte memórias, em parte memórias das memórias. Seguindo a bola de tênis até o jardim da Sra. Dunwiddy e, uma vez lá, experimentando erguer a bola de vidro ornamental para ver seu rosto nela, enorme e distorcido, sentindo-a cair no caminho de pedra, observando quando ela se despedaçou em milhares de pequenos estilhaços de vidro. Ele se lembrava dos dedos velhos fortes que o agarraram pela orelha e o arrastaram para fora do quintal e para dentro da casa...
— A senhora afugentou o Spider. Não foi?
O maxilar da Sra. Dunwiddy parecia o de um buldogue mecânico. Ela fez que sim com a cabeça.
— Eu bani o seu irmão. Mas não queria que acontecesse como aconteceu. Todo mundo sabia um pouco de magia naquele tempo. Não tínhamos esses DVDs, celulares, microondas, mesmo assim sabia bastante. Eu só queria ensinar uma lição a você. Você se achava tão importante, era encrenqueiro, insolente, azedo. Um moleque bagunceiro, respondão, malcriado. Eu o arranquei de você pra te ensinar uma lição.
Fat Charlie ouviu as palavras, mas não entendeu.
— Você o arrancou?
— Eu separei o Spider de você. Toda a esperteza. Toda a perversidade. Toda aquela diabrura. Tudo aquilo.
Ela suspirou.
— Erro meu. Ninguém me disse que fazer magia em um... Em pessoas da linhagem do seu pai deixa tudo maior. Tudo ficar maior.
Outro gole d’água.
— Sua mãe nunca acreditou. Não de verdade. Mas aquele Spider, ele era pior que você. Seu pai nunca dizia nada a respeito até eu o afugentar. Mesmo então, tudo o que ele me disse foi que, se você não consertasse tudo isso, não era mais filho dele.
Ele queria argumentar, dizer que aquilo era tudo bobagem, que Spider não era parte dele, não mais do que Fat Charlie era parte do mar ou das trevas. Em vez disso, perguntou:
— Onde está a pena?
— Que pena?
— Quando eu voltei daquele lugar. O lugar com os rochedos e as cavernas. Eu estava segurando uma pena. O que você fez com ela?
— Eu não lembro. Eu sou velha. Tenho 104 anos.
— Onde ela está?
— Eu esqueci.
— Por favor, me diga.
— Não estou com ela.
— Quem está?
— Callyanne.
— A Sra. Higgler?
Ela se inclinou para a frente e, em tom de confidencia, disse: — As outras duas, elas são apenas meninas. São irresponsáveis.
— Eu liguei para a Sra. Higgler antes de sair. Parei na casa dela no caminho para o cemitério. A Sra. Bustamonte diz que ela foi embora.
A Sra. Dunwiddy balançou suavemente de um lado pro outro, como se estivesse se embalando para dormir.
— Não tenho muito tempo aqui. Parei de comer comida sólida depois que você partiu da última vez. Não dá mais. Só água. Algumas mulheres dizem que amam o seu pai, mas eu o conheci bem antes delas. Quando eu ainda era bonita, ele me levava pra dançar. Me buscava e me levava por aí. Ele já era um homem velho na época, mas sempre fazia a garota se sentir especial. Eu não me sentia— — Ela parou, tomou outro gole d’água. Suas mãos tremiam. Fat Charlie pegou o copo vazio. — Cento e quatro anos. E nunca fiquei de cama durante o dia, a não ser de resguardo. E agora já era.
— Tenho certeza de que a senhora vai chegar aos 105 — consolou Fat Charlie, sem jeito.
— Não diga isso! — Ela parecia alarmada. — Não! Sua família já criou problemas demais. Não faça isso acontecer.
— Eu não sou como o meu pai — observou Fat Charlie. — Não sou mágico. Spider herdou todo esse lado da família, lembra?
Ela não parecia escutar. Disse:
— Quando a gente ia dançar, bem antes da Segunda Guerra, seu pai falava com o líder da banda, e muitas vezes o chamavam pra cantar. Todo mundo ria e saudava. Assim ele fazia as coisas acontecerem. Cantando.
— Cadê a Sra. Higgler?
— Foi pra casa.
— A casa dela está vazia. O carro não está lá.
— Ela foi pra casa.
— Ahm... Você quer dizer que ela morreu?
A velha senhora nos lençóis brancos soprou e engasgou procurando fôlego. Ela já não parecia ser capaz de falar, e fez um gesto na direção de Fat Charlie.
— A senhora quer que eu chame alguém?
Ela fez que sim com a cabeça, e continuou a engasgar e tossir enquanto Fat Charlie saía para procurar a Sra. Bustamonte. Ela estava sentada na cozinha, assistindo ao programa da Oprah numa antiga televisão bem pequena que ficava sobre o balcão da cozinha.
— Ela precisa da senhora.
A Sra. Bustamonte saiu. Voltou trazendo a jarra de água vazia.
— O que você disse pra ela ficar daquele jeito?
— Ela estava tendo um ataque ou algo assim?
A Sra. Bustamonte o encarou.
— Não, Charles. Estava rindo de você. Diz que você faz ela se sentir bem.
— Ah. Ela disse que a Sra. Higgler tinha ido pra casa. Eu perguntei se queria dizer que ela tinha morrido.
A Sra. Bustamonte então sorriu.
— Saint Andrews. Callyanne foi pra Saint Andrews.
Ela encheu a jarra na pia.
— Quando tudo isso começou, eu achava que era eu contra Spider, e que vocês quatro estavam do meu lado. Agora levaram Spider embora, e sou eu contra vocês quatro. — Ela fechou a torneira e o olhou de um jeito sombrio. — Eu não acredito em mais ninguém. A Sra. Dunwiddy deve estar só fingindo que está doente. Provavelmente assim que eu for embora ela vai pular da cama e dançar o charleston pelo quarto.
— Ela não come. Diz que faz ela se sentir mal por dentro. Não quer nada pra encher a barriga. Só água.
— Para onde em Saint Andrews ela foi?
— Vá embora logo. Sua família, vocês todos já fizeram mal o suficiente por aqui.
Fat Charlie parecia prestes a dizer alguma coisa, mas não disse nada e saiu sem mais palavra.
A Sra. Bustamonte levou a jarra de água para a Sra. Dunwiddy, que permanecia quieta na cama.
— O filho do Nancy odeia a gente — disse a Sra. Bustamonte. — Que que cê disse pra ele, afinal?
A Sra. Dunwiddy não falou nada. A Sra. Bustamonte ficou ouvindo e, quando teve certeza de que a velha senhora ainda respirava, tirou-lhe do rosto os grossos óculos, colocou-os ao lado da cama e puxou os lençóis para cobrir seus ombros.
Depois disso, simplesmente esperou pelo fim.
Fat Charlie saiu dirigindo sem ter muita certeza de aonde iria. Ele atravessara o Atlântico pela terceira vez em duas semanas, e o dinheiro que Spider lhe dera estava quase no fim. Estava sozinho no carro e, por estar sozinho, começou a cantarolar.
Fat Charlie passou por uma aglomeração de restaurantes jamaicanos quando notou um aviso na vitrine de uma loja: Desconto Para as Ilhas. Parou o carro e entrou na loja.
— Nós da A-One estamos aqui para suprir todas as suas necessidades de viagem — disse o agente no tom de voz cuidadoso e algo tímido que os médicos geralmente usam para dizer a alguém que o membro em questão terá que ser amputado.
— Ah. Sim. Obrigado. Ahm... Qual a maneira mais barata de chegar a Saint Andrews?
— Você está indo de férias?
— Na verdade, não. Só quero ficar lá um dia. Talvez dois.
— Quando pretende partir?
— Nesta tarde.
— Você deve estar brincando.
— De jeito nenhum.
O homem lançou um olhar lúgubre para a tela do computador e teclou alguma coisa.
— Parece que aqui não há nada por menos de 1.200 dólares.
— Ah.
Fat Charlie murchou.
Mais batidas no teclado. O homem fungou.
— Isso não pode estar certo— Espere um pouco.
Um telefonema.
— Essa tarifa ainda é válida? — perguntou o homem. Rabiscou alguns números num bloco e olhou para Fat Charlie. — Se você puder ficar uma semana lá, no Hotel Dolphin, eu conseguiria uma semana de férias por 500 dólares, com refeições incluídas. O vôo custará apenas a taxa de embarque.